Antes da segunda partida da final da Copa do Brasil entre Internacional e Corinthians em Porto Alegre, que após empate de 2 a 2 asseguraria ao Corinthians a conquista do título, voltou à tona uma questão cuja discussão eu já havia compartilhado com outros amigos e companheiros que também são torcedores e amantes do futebol: a concentração.
Em uma coletiva de imprensa, Ronaldo reclamou do excesso de concentrações antes de partidas decisivas e citou o exemplo do Barcelona para mostrar como tal situação é tratada pelos clubes europeus:
O título da Copa do Brasil é importante também porque vai nos dar tranquilidade para o segundo semestre, espero que com isso diminua o tempo de concentração. Em seis meses este ano, acho que ficamos três concentrados. Itu, jogos. Nem temos mais brincadeiras para fazer... É muito tempo concentrado, sem ficar com a família. Eu gostaria de passar mais tempo em casa no segundo semestre. Na Europa não existe isso. O Barcelona, campeão da Champions [Liga dos Campeões], se apresentava no dia do jogo. Só na final precisou chegar um dia antes porque a Uefa quem mandou. [1]
A reclamação de Ronaldo suscitou uma interessante e polêmica discussão entre os jornalistas, jogadores, técnicos e dirigentes de futebol nos programas de rádio e TV e sites e blogs da mídia esportiva e, principalmente, entre os torcedores. A pergunta feita por todos era: afinal, a concentração de profissionais do futebol antes de uma partida é realmente necessária? Se sim, até que ponto? Se não, quais podem ser as alternativas?
Não encontrei registros sobre a história da concentração do futebol. Mas, certamente, ela acompanha a trajetória do futebol brasileiro e mundial desde o início de sua profissionalização.
Antes da profissionalização do futebol brasileiro, os jogadores dividiam-se entre o futebol, como uma oportunidade de lazer e prática esportiva, e seus respectivos empregos. A grande maioria dos jogadores era formada por operários e estudantes.
Como bem coloca Chris Bambery em Marxism and sport, texto escrito em uma edição da International Socialism Journal de 1996, o lazer está diretamente ligado à exploração do trabalho:
O lazer é encarado como algo distinto do trabalho, algo que é ganho como recompensa por mais um "dia justo de trabalho". O marxista polonês Franz Jakubowski argumenta: "A alienação do trabalho tem o efeito de alienar o homem de si mesmo. A vida social torna-se meramente um meio de autopreservação humana". Conseqüentemente, o 'tempo livre' não é realmente 'nosso tempo'. [2]
A profissionalização do futebol brasileiro ocorrida na transição dos anos 20 para os anos 30, no contexto da Grande Depressão, da ascensão do nazi-fascismo na Europa e da chegada de Getúlio Vargas à presidência do Brasil, permitiu a sua popularização, algo repudiado por clubes tradcionais da elite que até então dominavam o futebol.
Por outro lado, a profissionalização do futebol obviamente não estaria imune aos diversos problemas sociais existentes na época. Os jogadores de futebol não deixavam de se manter na condição de trabalhadores, mesmo que, evidentemente, não-convencionais em relação à grande maioria dos trabalhadores da cidade e do campo. Assim como a classe operária brasileira, a enorme maioria dos jogadores recebia baixos salários e possuía parcos direitos sociais.
Voltando à questão inicial, há uma evidente influência militar na questão da concentração. Aliás, a educação militar teve um papel crucial para a formação e o desenvolvimento do esporte moderno. Assim como os guerreiros na Antigüidade e os soldados em tempos contemporâneos preparavam-se para grandes batalhas, os jogadores de futebol passam dias e mais dias enfurnados em hotéis durante praticamente toda semana da temporada, seja antes de partidas decisivas ou não.
O saudoso João Saldanha, técnico da Seleção Brasileira antes da Copa de 1970, jornalista, botafoguense fanático e militante do PCB, costumava dizer uma frase que se tornou folclórica: "Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária seria campeão invicto".
Mesmo que cômica, a frase faz sentido. Mas, afinal, ao que interessa a concentração? Certamente, muitos dirão que serve para se alcançar o melhor rendimento possível, em termos físicos, táticos, técnicos e psicológicos, de uma equipe para a conquista de vitórias e títulos e a formação de times vencedores. Segundo a idéia, este seria o autêntico sentido do futebol profissional e quanto mais ricos forem e maior visibilidade midiática e torcida tiverem os clubes de futebol mais razão terão em agir dessa forma.
Os jogadores, tão humanos quanto qualquer pessoa com suas limitações e habilidades, tornam-se verdadeiros "corpos-máquina" através do seu futebol e mercadorias com um determinado valor de troca sujeitas a uma incessante circulação. Buscam a todo momento superar os adversários e suas próprias limitações. O competitivismo, uma característica ideológica da sociedade capitalista, torna-se algo supostamente inerente ao futebol e ao esporte em geral.
Chris Bambery cita uma declaração de um jogador inglês sobre a sua condição:
O antigo capitão do Tottenham Hotspur, Mike England, disse em The Glory Game, livro de Hunter Davis: "Eu nunca digo que irei jogar futebol. É um trabalho". Ninguém estava jogando na Eurocopa, nas Olimpíadas ou na última Copa do Mundo.
No entanto, há um questionamento que não foi lançado à discussão: a quem realmente interessa este competitivismo levado ao extremo? Aos milhões de torcedores, cuja identificação com os clubes vai para além das quatro linhas e é permeada pelas relações sociais, ou à indústria do futebol controlada por alguns poucos dirigentes de clubes e federações e donos de grandes corporações?
Torna-se clara a importância crucial de uma questão de fundo que se relaciona diretamente à idéia dos jogadores como "corpos-máquina" e mercadorias: a força e o poder da indústria do futebol no Brasil e no mundo, a mesma que movimenta valores astronômicos em transferências e salários de alguns poucos jogadores, uma realidade minoritária no futebol brasileiro e mundial restrita aos jogadores de clubes grandes e médios das primeiras divisões dos principais campeonatos do mundo e, mais recentemente, alguns países do Leste Europeu e do Oriente Médio.
Uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas em 2000 avaliava que o mercado do futebol mundial movimentava 250 bilhões de dólares. [3] Para que se tenha uma idéia, a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) lançou uma avaliação sobre a situação da fome no mundo (que atinge entre 950 milhões e 1 bilhão de pessoas) na qual coloca que são necessários aproximadamente R$ 58 bilhões de reais para o combate efetivo à fome. [4]
Outro argumento recorrente em defesa da permanência da concentração é o comportamento supostamente "inadequado" de alguns jogadores de futebol. Após a declaração polêmica de Ronaldo, vi Mauro Silva, jogador do Bragantino, do La Coruña e campeão da Copa do Mundo de 1994 que se aposentou recentemente, defender este argumento no Bate-Bola, programa da ESPN Brasil. Segundo ele, para que se flexibilize a rigidez do atual sistema de concentração, como acontece na Europa, a cultura dos jogadores brasileiros em relação à vida noturna e à alimentação adequada de um atleta também precisa ser mudada.
Ou seja, os jogadores (jovens, em sua maioria, que dedicaram boa parte de sua adolescência e juventude ao sonho de se tornarem jogadores profissionais) precisam comportar-se de forma disciplinada como autênticos atletas, ou melhor, "corpos-máquina". Vários grandes craques do futebol mundial mostraram que nem sempre a concentração e a rígida disciplina são premissas para o alto rendimento: Romário e Maradona são alguns dos mais recentes exemplos.
Será que a exagerada glamourização da vida fora de campo dos jogadores não é justamente um reflexo e um momentâneo alívio das constantes pressões impostas pela indústria do futebol, assim como o futebol amador no início do século XX era forma dos operários extravasarem toda a pressão da rotina de trabalho? Penso que sim.
Após o surgimento da discussão, a emblemática experiência da Democracia Corintiana de 1982 a 1984 foi automaticamente relembrada. Naquele período, o Corinthians era presidido por Waldemar Pires, adversário do folclórico Vicente Matheus, e tinha como diretor de futebol o sociólogo Adilson Monteiro Alves. O elenco corintiano era composto por jovens talentos, como Ataliba e Casagrande, e jogadores identificados com a torcida corintiana, como Zé Maria, Wladimir e Biro Biro e tinha como Sócrates como sua principal referência dentro e fora de campo.
Para quem ainda não conhece ou ouviu falar sobre tal experiência, a Democracia Corintiana consistia em uma embrionária experiência de autogestão: os jogadores (titulares e reservas), os funcionários e a comissão técnica do departamento de futebol profissional corintiano discutiam e decidiam coletivamente quase todos os assuntos que diziam respeito ao seu funcionamento, desde transferências de jogadores até a rotina de treinos, passando pela questão da concentração.
A concentração não chegou a ser definitivamente abolida durante a Democracia Corintiana. No entanto, os jogadores tinham a autonomia de sair da concentração em alguns momentos e, antes de algumas partidas, podiam dormir em suas casas com suas respectivas famílias e reapresentar-se no mesmo dia da partida. Dois dos principais lemas da Democracia Corintiana eram "Ganhar ou perder, mas sempre com democracia" e "liberdade com responsabilidade", em claras alusões à luta contra a ditadura militar e à autodisciplina.
Tudo isto acontecia em uma época marcada pela luta contra a ditadura militar e em um grande ascenso de lutas do movimento operário com a deflagração das greves do ABC no final dos anos 70 e a posterior fundação da CUT e do PT. O movimento também foi capaz de transformar a consciência boleira. Alguns jogadores de futebol, como Afonsinho, Reinaldo, Sócrates, Wladimir e Casagrande - refletindo o ascenso do movimento - identificaram-se com as idéias de esquerda, engajaram-se na luta contra a ditadura e começaram a lutar pelos direitos dos jogadores, como o fim do passe e melhores condições de trabalho.
Como disse anteriormente, a experiência de autogestão no futebol promovida pela Democracia Corintiana era embrionária. Portanto, enfrentou contradições, divergências internas entre os jogadores, a comissão técnica e a diretoria e entre os próprios jogadores e, pelas limitações colocadas por suas próprias contradições, não foi capaz de avançar em importantes questões, como a luta contra o racismo no futebol.
Após a vitória de uma ala conservadora nas eleições presidenciais do Corinthians e a derrota da emenda Dante de Oliveira (que restituía as eleições diretas no Brasil), a Democracia Corintiana terminou em 1984. Pouco antes, Sócrates havia prometido que não ficaria no futebol brasileiro caso a emenda Dante de Oliveira fosse derrotada e transferiu-se para a Fiorentina da Itália. [5] Alguns jogadores que vivenciaram aquela experiência continuaram jogando no clube, mas em condições totalmente distintas.
Em termos financeiros e de títulos, a Democracia Corintiana foi uma das épocas mais vitoriosas do Corinthians, com a conquista de dois títulos do Campeonato Paulista, em 1982 e 1983, e o saldo positivo de 3 milhões de dólares em caixa, mostrando que a transformação na gestão e administração da equipe não comprometeu a eficiência técnica da equipe dentro das quatro linhas.
Portanto, retornando à questão central anteriormente colocada: a quem interessa a permanência da concentração? A permanência da concentração atende prioritariamente às necessidades da indústria do futebol, garantindo um competitivismo exacerbado a partir da ênfase cada vez maior no desempenho físico e tático do que técnico dos jogadores e maiores lucros aos clubes, federações e empresas controladas por poucos em detrimento de uma ampla participação coletiva de profissionais e torcedores nos rumos do futebol.
De forma sintética, Chris Bambery explica como se dá a relação entre o esporte (entre eles, o futebol, principalmente) e o capitalismo:
Portanto, o esporte está totalmente integrado em uma interação entre rivalidade interestatal, produção capitalista e relações de classe. Como uma ideologia, difundida pela mídia em uma enorme escala, o esporte é parte e parcela da ideologia burguesa dominante. A estrutura hierárquica do esporte reflete a estrutura social do capitalismo e seu sistema de seleção competitiva, promoção, hierarquia e ascensão social. A competitividade e os recordes, forças que movimentam o esporte, são reflexos das forças que movimentam a produção capitalista.
A luta pela abolição da concentração é procedente e justa. Obviamente, a reclamação de Ronaldo não aponta neste sentido. Mas a discussão vai bem mais além da questão da concentração: mostra que a passividade de jogadores frente às pressões colocadas pela indústria do futebol possui seus limites. A luta pela abolição do passe e a experiência da Democracia Corintiana mostram que o descontentamento de jogadores pode se transformar em ações concretas e, junto com um ascenso do movimento de massas, pode expressar a radicalização do movimento.
Mesmo com o atual momento de refluxo e fragmentação das lutas sociais no Brasil, talvez seja a hora de entrar em pauta a inciativa de construir uma frente de luta unitária entre um setor dos profissionais do futebol (jogadores, técnicos e assistentes), na luta por seus direitos como trabalhadores, e torcedores, que sofrem na pele e no bolso os efeitos da mercantilização do futebol com os ingressos caros e ações de repressão e violência policial.
Ainda assim, o futebol é um elemento da cultura popular brasileira e sujeito às contradições sociais colocadas pelo capitalismo brasileiro e global. Um projeto de transformação revolucionária da sociedade brasileira, que vise dialogar e se inserir massivamente entre os trabalhadores e outros setores populares do campo e da cidade, terá que lidar e apontar alternativas concretas a estas mazelas e contradições expressadas no futebol, no esporte em geral e outras esferas da vida social e cultural.
Apenas dessa forma, o questionamento à sociedade em que vivemos e a clareza sobre a necessidade do engajamento na luta contra a exploração e a opressão da sociedade capitalista terão condições de sair da marginalidade social e política e trabalhadores do futebol, torcedores e socialistas perceberão que o futebol está longe de andar separado da política, pelo contrário: os problemas vivenciados por trabalhadores e torcedores de futebol refletem diretamente as contradições do capitalismo.
E para que a luta pela transformação do futebol, de uma fonte lucrativa para poucos em uma recreação física e cultural realmente acessível a todos os homens e mulheres, seja concretizada e consolidada não apenas "pela metade", de forma frágil e vulnerável, deve necessariamente unir-se à luta pela emancipação humana e construção de uma sociedade igualitária, justa, livre e radicalmente democrática, uma sociedade socialista.