terça-feira, 27 de julho de 2010

Conflito entre Uribe e Chávez: os rumos da América do Sul em jogo

Vivenciei uma situação bem inusitada na última quinta-feira (22 de julho). Estava procurando artigos de artesanato em uma feira de economia popular em Caracas no mesmo momento em que Chávez, durante visita oficial de Maradona, anunciou o rompimento de relações diplomáticas da Venezuela com a Colômbia após denúncias em reunião na Organização de Estados Americanos (OEA) de que as FARCs estariam sendo protegidas pelo governo venezuelano.

Todos os comerciantes estavam concentrados, assistindo à TV, lendo jornais ou comentando entre eles o fato. Pude perceber rapidamente que a maioria era favorável à decisão tomada pelo governo venezuelano e expressaram seu repúdio às políticas ultraconservadoras e beligerantes de Uribe.

Imediatamente, TVs ligadas à direita venezuelana fortaleceram o discurso da "beligerância incessante de Chávez" que buscava, na verdade, criar um clima de tensão artificial visando a clara desestabilização do governo venezuelano e, principalmente, dos movimentos e organizações populares que sustentam e aprofundam os avanços conquistados por sua luta e mobilização desde a resistência à tentativa de golpe de Estado em 2003.

A TV venezuelana TeleSUR tem mostrado cotidianamente programas e matérias, com depoimentos de diplomatas, ex-paramilitares colombianos, entre outros atores envolvidos na questão, que comprovam a entrada a partir das fronteiras de inúmeros paramilitares colombianos e membros de órgãos de inteligência do Estado colombiano na Venezuela.

Também não é por acaso que um conhecido protagonista em conflitos e questões internacionais não tem sido citado pela grande mídia venezuelana e internacional: os Estados Unidos possuem interesses diretos em tornar a Colômbia um verdadeiro e estratégico enclave político-militar na América do Sul, capaz de desestabilizar e evitar o aprofundamento de experiências antineoliberais e antiimperialistas (como se vivencia na Venezuela e na Bolívia) e de permitir acesso a diversos e abundantes recursos naturais localizados no continente sul-americano, ameaçando a soberania de todos os países da região.

O pretexto da política antidrogas e a construção de bases militares norte-americanas na Colômbia são uma clara demonstração disso.

Deixei Caracas rumo ao Brasil em um momento de grande efervescência em torno de um fato político crucial que diz respeito não apenas à Venezuela e à Colômbia, mas sim aos rumos do continente sul-americano.

A inserção do Brasil no conflito

Ao chegar no Brasil, não me surpreendi ao tomar conhecimento do discurso pautado pela grande mídia brasileira, logo incorporado pelo senso comum, de que existe uma clara intenção da Venezuela de entrar em guerra contra a Colômbia.

A direita brasileira possui total noção de que o conflito originado por Uribe possui desdobramentos no Brasil e em toda a América do Sul, portanto cumpre o papel de fortalecer e radicalizar o discurso dos veículos da grande mídia.

As últimas declarações de Índio da Costa (DEM), candidato a vice-presidente de Serra, sobre relações supostamente estreitas entre as FARCs, o PT e o governo Lula foram politicamente calculadas e expressam umque a direita brasileira em firme parceria com a grande mídia tem conseguido: recuar e pressionar pela direita a política externa do governo Lula.

Não se pode conferir à política externa brasileira um caráter essencialmente progressista, mas teve atitudes (obrigatórias, para um governo que se diz progressista, diga-se de passagem) em alguns casos que certamente um governo assumidamente de direita não teria: o firme repúdio ao golpe militar em Honduras e o respeito à soberania do povo boliviano durante o episódio de nacionalização do gás natural boliviano.

Por outro lado, os eixos de uma autêntica política de cooperação e integração entre os povos são incorporados de forma esperta e meramente retórica pelo governo Lula em diversos casos, como evidenciam a ocupação militar brasileira no Haiti e o processo de internacionalização de grandes empresas brasileiras com a exploração de trabalhadores e comunidades indígenas e tradicionais e a agressão à soberania de países vizinhos sul-americanos.

A declaração de Marco Aurélio Garcia, dirigente do PT e assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, sobre o conflito em questão demonstra que não há a menor vontade política do governo brasileiro em adotar medidas mais duras de repúdio às posturas ultraconservadoras e beligerantes de Uribe:

"Eu acho que é lamentável isso, mas nós temos convicção de que com o estabelecimento do novo governo [da Colômbia] essas coisas possam se recompor imediatamente. O Brasil está ajudando e vai continuar ajudando através de conversas com as partes", disse Garcia.

A necessária resposta unitária dos lutadores populares sul-americanos

Não podemos aguardar respostas a esta situação a partir de cima, a auto-organização popular de lutadores no Brasil e na América do Sul deve impulsionar iniciativas políticas a esta questão que diz respeito aos rumos da América do Sul e da geopolítica internacional como um todo.

A construção de uma unidade de forças políticas de esquerda e movimentos sociais do continente e da Colômbia no combate sem vacilações às polìticas ultraconservadoras de Uribe e no sentido de pressionar os governos de países sul-americanos e os organismos multilaterais sul-americanos e internacionais a tomarem medidas duras.

Ou seja, torna-se urgente a organização de campanhas massivas de repúdio ao governo colombiano construída de baixo para cima.

Seria uma importante iniciativa para combater a possibilidade cada vez mais real de guinada à direita na América do Sul que está sendo esboçada política e militarmente com a intervenção direta (e silenciosa) dos EUA.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A falsa solução do Estado palestino

Retomo o 'travessia insurgente' dois dias após uma das maiores barbáries praticadas por Israel em seus 62 anos de políticas baseadas em racismo e terrorismo de Estado.

A legitimidade israelense perante à opinião pública internacional equipara-se cada vez mais ao regime de apartheid sul-africano vigente até 1994 perto de seus últimos dias.

Obviamente, não há como compreender a questão palestina e a histórica luta de libertação nacional empreendida por seu povo sem situá-las no contexto do Oriente Médio e o papel estratégico cumprido pelas potências imperialistas na região.

Condenar o sionismo não se trata de uma questão de defender muçulmanos, judeus ou cristãos, mas sim toda a humanidade.

No entanto, ao contrário do que muitos pensam, a criação de um Estado palestino defendida por alguns ativistas, intelectuais e até chefes de Estado (como o próprio presidente brasileiro Lula, em recente viagem a Israel e aos territórios da Autoridade Nacional Palestina) não solucionaria efetivamente o problema e poderia implicar em diversos outros.

Tal tema, que ganha mais densidade do que nunca no atual momento, foi abordado por Rui Polly em "A falsa solução do Estado palestino", artigo publicado na edição de julho de 2009 da Revista Revolutas com argumentos bastante procedentes contrapondo a ilusão criada em torno da proposta de Obama e do governo norte-americano pela realização de negociações entre governos e organismos regionais e internacionais para a criação de um Estado palestino.

Leiam o artigo na íntegra:

Em maio, Barack Obama, presidente dos EUA, defendeu em uma reunião com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, a proposta de criação de um Estado palestino. Declarou seu engajamento pessoal para concretizá-la. A ofensiva do governo norte-americano desde então tem surtido efeito. Além da União Européia, a Liga das Nações Árabes e a Autoridade Nacional Palestina (ANP) declararam seu apoio à proposta. Ismail Haniyeh, líder do governo do Hamas em Gaza, declarou que "se existe um projeto realista para resolver a causa palestina com o estabelecimento de um Estado nos territórios ocupados em 1967 e com plena soberania, apoiaremos". E, finalmente, o próprio Netanyahu assumiu no mês de junho a possibilidade de construção de um Estado palestino.

Mas enquanto os palestinos exigem plena soberania, para Israel o Estado palestino deve ser desmilitarizado, sem controle do espaço aéreo, e proibido de estabelecer alianças com o Irã ou com o Hezbollah.

Apesar de posições tão antagônicas, o que não se pode negar é que Obama tem conseguido avançar na construção de um consenso em torno da proposta de criação de um Estado palestino, também conhecido como o princípio de "dois Estados para dois povos". Consolidado o consenso, as negociações formais teriam início, até se chegar eventualmente a uma posição comum. Não é possível afirmar se os EUA conseguirão costurar o consenso para que as negociações tenham início. Em particular, precisarão convencer Israel de suspender a colonização na Cisjordânia. Mas o fato é que há uma forte ofensiva política articulada para que o processo de negociações tenha início.

Se isso ocorrer, independente dos desdobramentos seguintes, significará o abandono da proposta de um único Estado, laico e democrático, abrigando judeus e palestinos, que abrangesse o território integral da Palestina histórica. Consolidaria a mudança de posição que teve início no início dos anos 1990, quando a OLP decidiu participar das negociações que culminaram na assinatura do trágico Acordo de Oslo em 1993.

A quem serve a proposta

Mesmo assumindo a hipótese, altamente improvável, de que o estado palestino fosse criado no território anterior às anexações de 1967, ele surgiria em condições absolutamente desfavoráveis. Do ponto de vista econômico, dificilmente o novo Estado poderia desenvolver-se na escala e velocidade necessárias para garantir suas necessidades. Já Israel conta com uma economia estruturada, além dos subsídios fornecidos pelos seus aliados norte-americanos que foram cruciais para a sua existência.

No plano militar, a correlação de forças não seria muito diferente da atual, pois além de Israel ser uma das maiores potências militares do mundo, os EUA e Israel não aceitarão um Estado palestino que desenvolva livremente seu poderio militar. E, em caso de um conflito militar, Israel conta ainda com o apoio militar dos EUA, a maior potência militar do planeta.

Há também outras questões importantes, como o controle sobre recursos naturais existentes nas áreas ocupadas após 1967, como é especialmente o caso dos recursos hídricos.

Finalmente, uma coexistência pacífica entre os dois Estados seria impossível enquanto persistisse a existência do Estado sionista de Israel. Os sionistas têm mostrado reiteradamente, com a brutalidade de suas ações militares, um ódio racista que mal esconde o desejo de exterminar o povo palestino. As imagens do recente massacre ainda estão bem vivas.

A política de Obama

A idéia de que seja a única solução capaz de garantir a paz, esconde o fato de que o Estado de Israel se formou ao longo de seis décadas de gradual genocídio contra o povo palestino, pela usurpação permanente de territórios através da expulsão de milhões de palestinos de suas terras, com o aval e apoio decisivo dos EUA e demais potências imperialistas.

Muitos vêem Obama como um político progressista e democrático. A sua retórica contribui para alimentar essa ilusão, como o seu discurso em Cairo em junho passado. Obama é diferente de Bush, mas ao seu modo vem defendendo, na condição de presidente, os interesses do imperialismo norte-americano. Assim, ao mesmo tempo em que faz belos discursos pela paz, aprofunda a intervenção militar no Afeganistão.

O compromisso de Obama com a criação do Estado palestino é coerente com essa política. É uma resposta à situação política desfavorável na região. O ataque sionista à Faixa de Gaza chocou o mundo inteiro, desencadeando grandes protestos e manifestações contra Israel. E obrigando os governos árabes, em geral servis aos EUA, a condenar a agressão israelense, acuados pela revolta das populações do mundo árabe.

Obama quer estabilidade política no Oriente Médio, para assegurar os interesses norte-americanos. Assim, o papel dos EUA em eventuais negociações, não se limitará à mediação, mas fará prevalecer o peso dos interesses imperiais no novo mapa que vislumbram para a Palestina e o Oriente Médio. Isso significa que não permitirão um Estado palestino econômica, política e militarmente soberano, que ameace Israel e gere mais instabilidade e tensões em uma região marcada historicamente por turbulências, guerras e revoluções. E, crucialmente, significa também que qualquer resultado deverá manter o papel de Israel como cão de guarda de seus interesses na região.

As atuais tensões entre EUA e Israel não expressam antagonismo de interesses ou projetos, mas sim divergências táticas e de métodos. Quaisquer pressões dos EUA por concessões de Israel nas negociações terão como objetivo garantir que o Estado palestino não seja um simples bolsão de apartheid, para assegurar um resultado minimamente honroso para as organizações que estarão representando o povo palestino.

Tiro no pé

Uma participação palestina nas negociações é, portanto, um tiro no pé. O palco das negociações será foco de uma enorme pressão política para que se chegue a um acordo. E lembremos que qualquer negociação implica concessões das partes envolvidas. Neste caso, para Israel significa abdicar de algumas das suas "conquistas" que, na verdade, foram produtos de simples usurpação. Mas quanto aos palestinos a primeira e maior concessão será o reconhecimento e a legitimação do Estado sionista que surgiu e se fortaleceu graças à sua destruição, ao seu enfraquecimento e à expatriação e assassinato de milhões de mulheres e homens. Essa concessão é, na verdade, um pressuposto para que a própria negociação ocorra. Quanto às concessões posteriores, os representantes palestinos terão que decidir quais usurpações e atos de agressão sionistas estão dispostos a legitimar.

Participar de tal processo equivale a entrar voluntariamente na jaula do leão.

Um só Estado

A única política que pode garantir a paz é a criação de um único Estado laico e democrático, em toda a área da Palestina histórica, onde conviveriam palestinos e judeus. Esta é uma bandeira histórica do povo palestino, que foi abandonada no início dos anos 1990, quando a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) iniciou as negociações com Israel que culminaram no trágico Acordo de Oslo em 1993. Yasser Arafat, então presidente da OLP, reconheceu o Estado de Israel em uma carta oficial enviada ao primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin.

Muitos dizem que é uma proposta inviável, mas é fato que palestinos e judeus conviveram na Palestina antes da fundação do Estado de Israel e da expulsão de cerca de 900 mil palestinos de suas terras. Durante décadas, a minoria de judeus (cerca de 15 mil) viveram na Palestina sem sofrer ataques ou perseguição. Hoje essa solução requer a derrota do sionismo e, portanto, do Estado terrorista de Israel.

É hora, portanto, de retomar essa bandeira e lutar por ela. E lembrar as valiosas lições do acordo de Oslo que enfraqueceram a luta do povo palestino e fortaleceram o sionismo.