quinta-feira, 20 de agosto de 2009

30 anos da Revolução Sandinista

Texto que escrevi para a edição de agosto da Revista Revolutas:

Desde que ocorreu há 30 anos atrás, a experiência da Revolução Sandinista na Nicarágua colocou e continua colocando importantes lições para os socialistas.

A Nicarágua foi marcada por um contexto político atípico no século XX. A família Somoza dominou o país por 52 anos (de 1927 a 1979) com sucessivas ditaduras militares. A Nicarágua possuía uma economia agrária e era um dos países com maiores índices de pobreza e corrupção do mundo.

A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) foi fundada em 1961, com clara inspiração na Revolução Cubana e nas idéias de Augusto Sandino, líder de uma rebelião popular contra a presença militar dos EUA na Nicarágua nos anos 20 e 30.

No início, a FSLN era formada basicamente por estudantes opositores à ditadura de Somoza e influenciados pelos movimentos guerrilheiros latino-americanos.

Mesmo em um duro contexto de censura e repressão, os sandinistas ganharam considerável inserção entre setores populares durante os anos 70 e tornaram-se a principal força política de oposição à sanguinária ditadura de Somoza.

A partir da metade dos anos 70, a ala majoritária da FSLN (os "terceristas") decidiu adotar uma política de frente popular, aliando-se a setores da burguesia nicaragüense que faziam oposição a Somoza.

Essa estratégia priorizava a luta contra Somoza e o imperialismo e deixava de lado a defesa de uma revolução social e política dos trabalhadores contra as mazelas provocadas pela burguesia nicaragüense com apoio do imperialismo norte-americano.

Ainda assim, a crescente repressão de Somoza com apoio norte-americano não foi capaz de sufocar a insatisfação popular contra as injustiças sociais que duravam há décadas. Os sandinistas derrubaram Somoza e tomaram o poder em julho de 1979.

De imediato, estabeleceu-se a Junta de Reconstrução Nacional que governou o país de 1979 a 1985. O governo sandinista era presidido por Daniel Ortega e, em sua maioria, composto por dirigentes da FSLN, mas também por alguns setores da burguesia nicaragüense que depois romperiam com o sandinismo.

Indiscutivelmente, o imperialismo cumpriu um papel fundamental no cenário político nicaragüense. Os governos norte-americanos sustentaram as ditaduras militares da família Somoza desde o início nos anos 20.

Após crescente campanha internacional contra Somoza, o presidente democrata norte-americano Jimmy Carter retirou o apoio a Somoza no início de 1979, mas continuava condenando os sandinistas.

Logo que assumiu a presidência norte-americana nos anos 80, o republicano Ronald Reagan deixou claro o apoio à direita nicaragüense na luta contra os sandinistas.

Já economicamente debilitada com um embargo econômico e restrições comerciais, o governo sandinista sofreu oposição militar da burguesia nicaragüense com evidenciado apoio financeiro e logístico dos Estados Unidos e colaboração da ditadura militar argentina – os chamados "contras" (abreviação para "contrarrevolucionários").

Mesmo no complicado contexto de guerra civil, a Revolução Sandinista alcançou importantes conquistas sociais na educação, reforma agrária, saúde e cultura. Em poucos anos, o analfabetismo foi reduzido em 37% (de 50% para 13%).

Os sandinistas decidiram manter um sistema de economia mista que implicava em colaboração com o capital privado e acabou por colocar outras contradições à luta contra a burguesia nicaragüense.

FSLN e Ortega venceram as eleições realizadas em 1984, mas a burguesia nicaragüense continuou articulando oposição com apoio norte-americano.

Ortega seria derrotado por Violeta Chamorro, ex-aliada sandinista, nas eleições presidenciais de 1990 e por mais duas vezes consecutivas em 1996 e 2001. A FSLN chegou novamente ao poder na eleição de Ortega em 2006 em uma controversa aliança com setores conservadores.

A Revolução Sandinista foi uma histórica demonstração de luta contra o imperialismo e serviu de inspiração para os trabalhadores do mundo inteiro. Mas suas limitações e contradições deixam claro que, mesmo que exista uma complexa relação entre nação e classe, a questão nacional não deve se sobrepor à luta de classes.

A luta contra o imperialismo apenas pode triunfar desde que se vincule à luta contra o capitalismo e paute o combate dos trabalhadores da cidade e do campo às burguesias nacionais.

Ou seja, a vitória de autênticas lutas de libertação nacional está diretamente ligada à conquista de uma sociedade sem exploração e opressão pelo protagonismo dos trabalhadores, uma sociedade socialista.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Movimento Música para Baixar

Recentemente, músicos, produtores e ativistas lançaram o movimento Música para Baixar (MPB) – http://musicaparabaixar.org.br – em defesa da liberdade de divulgar e baixar músicas na rede e da diversidade cultural e contra o jabá e o monopólio de grandes veículos de comunicação na divulgação da produção cultural.

Zélia Duncan, Leoni, Teatro Mágico, GOG, Nei Lisboa, músicos independentes e ativistas encabeçam o movimento. Leo Jaime, André Abujamra, Roger (do Ultraje a Rigor) e Ritchie também assinam o manifesto.

Uma interessante iniciativa na luta pela democratização da comunicação e da informação para possibilitar a difusão de um conhecimento livre e plural, sem fins comerciais.

Manifesto do Movimento Música para Baixar

É a partir do surgimento da democratização da comunicação pela rede cibernética, que a conjuntura na música muda completamente.

Um mundo acabou. Viva o mundo novo!

O que antes era um mercado definido por poucos agentes, detentores do monopólio dos veículos de comunicação, hoje se transformou numa fauna de diversidade cultural enorme, dando oportunidade e riqueza para a música nacional – não só do ponto de vista do artista e produtor(a), como também do usuário(a).

Neste sentido, formamos aqui o movimento Música para Baixar: reunião de artistas, produtores(as), ativistas da rede e usuários(as) da música em defesa da liberdade e da diversidade musical que circula livremente em todos os formatos e na Internet.

Quem baixa música não é pirata, é divulgador! Semeia gratuitamente projetos musicais.

Temos por finalidade debater e agir na flexibilização das leis da cadeia produtiva, para que estas não só assegurem nossos direitos de autor(a), mas também a difusão livre e democrática da música.

O MPB afirma que a prática do "jabá" nos veículos de comunicação é um dos principais responsáveis pela invisibilidade da grande maioria dos artistas. Por isso, defendemos a criminalização do “jabá” em nome da diversidade cultural.

O MPB irá resistir a qualquer atitude repressiva de controle da Internet e às ameaças contra as liberdades civis que impedem inovações. A rede é a única ferramenta disponível que realmente possibilita a democratização do acesso à comunicação e ao conhecimento, elementos indispensáveis à diversidade de pensamento.

Novos tempos necessitam de novos valores. Temas como economia solidária, flexibilização do direito autoral, software livre, cultura digital, comunicação comunitária e colaborativa são aspectos fundamentais para a criação de possibilidades de uma nova realidade a quem cria, produz e usa música.

O MPB irá promover debates e ações que permitam aos agentes desse processo, de uma forma mais ampla e participativa, tornarem-se criadores(as) e gestores(as) do futuro da música.

O futuro da música está em nossas mãos. Este é o manifesto do movimento Música Para Baixar.

Para assinar o manifesto basta acessar o seguinte link:
http://www.petitiononline.com/mpb/petition.html

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Estado e revolução: o retorno

Exponho aqui um interessante texto de Rui Kureda – disponível na edição de julho deste ano da Revista Revolutas – sobre o retorno da questão do Estado:

Estado e revolução: o retorno

Rui Kureda

A crise do capitalismo trouxe novamente o debate sobre a estratégia. Um debate crucial que articula temas como o programa, o papel do Estado, a política de alianças, os instrumentos e os métodos para concretizar os objetivos almejados. Tais questões pressupõem, por sua vez, uma análise da realidade que determinará os objetivos e tarefas a serem realizados. Essa discussão mal começou. Mas podemos encontrar algumas visões em textos e livros, como o livro A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, de Emir Sader, e nas teses que serão debatidas no II Congresso Nacional do PSOL.

Não pretendemos – e nem poderíamos – discutir tais questões aqui. Mas queremos chamar a atenção para o retorno de posições que propõem o fortalecimento do papel do Estado, conferindo-lhe um papel decisivo como "indutor de um novo modelo de desenvolvimento, que aponte para a construção do socialismo", segundo uma das teses congressuais do PSOL. Ou ainda, como defende outra tese, a defesa de "construção de um Estado democrático e forte" como um dos eixos programáticos com o "objetivo ampliar as capacidades e forças em sua relação com o mercado e subjugando-o".

Tais posições não são novas. Mas a diferença é que nos dias atuais há a experiência dos governos de esquerda da América Latina, que têm se constituído em paradigmas e referências para significativas parcelas de militantes dos movimentos sociais e organizações de esquerda.

Inconsistências

Qualquer suposição de que se possa controlar o Estado, e colocá-lo a serviço de políticas que favoreçam a população pobre e criem condições para avançar rumo ao socialismo, deve responder algumas questões fundamentais. Uma delas é como chegar, e por quais vias, ao controle do atual Estado? Talvez a resposta óbvia, tendo em conta os processos na Venezuela e demais países, seja a via eleitoral.

Mas não se pode esquecer que os governos de esquerda da América Latina foram produtos de circunstâncias concretas. Durante o primeiro governo de Chávez não havia uma "revolução bolivariana" em curso. O marco do seu surgimento foi o amplo movimento de massas que salvou Chávez dos golpistas que o haviam seqüestrado em 2002. Da mesma forma, na Bolívia, a eleição de Morales em 2005 expressou a radicalização da grande revolta popular que em 2004 obrigou Sánchez de Lozada a fugir do país.

Dois aspectos merecem ser considerados. Primeiro, que os resultados dos processos latino-americanos não podem ser analisados em uma relação causal, ou seja, não podem ser considerados como conseqüências inevitáveis, uma vez que refletiram situações e correlações de força específicas àquelas sociedades. Segundo, qualquer generalização daquelas (e outras) experiências – produtos de circunstâncias concretas – em táticas ou caminhos a serem perseguidos é temerária, uma vez que se leva a implantar políticas que não correspondem à realidade concreta do Brasil. Foi o caso das guerrilhas urbanas e rurais que tentaram repetir no Brasil e na América Latina uma estratégia que ocorreu em Cuba em uma situação completamente específica e atípica. É preciso observar o que é universal e particular em cada processo.

A idéia de que a partir do controle do Estado se possa implementar um "novo modelo de desenvolvimento" exige que se explicite o que é esse "novo modelo". E, independente disso, cabe lembrar que ganhar o governo não significa ter o controle do Estado. No caso do Brasil, o Estado – e a própria estrutura social – é muito maior e extremamente mais complexo que em qualquer outro país da América Latina. As dificuldades seriam muito maiores, e qualquer política socializante envolveria a oposição não somente da direita e do grande capital nacional e estrangeiro, mas também da burocracia estatal, da mídia, dos parlamentos estaduais e locais, de setores significativos da classe média e do extenso aparelho repressivo que engloba as Forças Armadas e as Polícias Militares e Civis estaduais.

Por fim, é necessária uma boa dose de realismo ao analisarmos a situação da Venezuela e outros países latino-americanos. Não podemos nos ater aos governos, mas sim enxergar o todo, em especial a situação da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Surpreendentemente, Sader é realista quando afirma que aqueles governos são governos antineoliberais, mas que ainda não podem ser considerados anticapitalistas. Ele está correto.

Com relação ao governo Chávez e aos demais governos, não é possível qualquer apoio acrítico e incondicional. Apoiamos as suas medidas progressistas, que confrontem o capital e o imperialismo, e que favoreçam a população. Mas não podemos apoiar medidas que tendem a apertar o controle sobre os movimentos e a promover um papel cada vez mais centralizador do Estado.

Portanto, para nós, o fundamental é o fortalecimento da auto-organização e da consciência revolucionária da classe trabalhadora e dos explorados. É isso que possibilita a auto-emancipação dos trabalhadores, e não o fortalecimento do Estado.

A natureza do Estado

Por trás de tudo isso está o debate sobre a natureza do Estado. Fala-se em tomar o Estado, controlar o Estado. Mas o Estado não é uma "coisa" que possa ser tomada para que se modifique sua natureza conforme a vontade. A estrutura do aparelho de Estado burguês expressa as relações sociais preponderantes no capitalismo, baseadas na exploração de uma classe majoritária na sociedade – a classe trabalhadora – por uma classe minoritária – a burguesia. O Estado existe precisamente para manter e assegurar essas relações de exploração através dos seus vários mecanismos: parlamento, forças armadas e polícia.

É verdade que o Estado sofre mudanças. Assume formas e regimes políticos diferentes, mas até o limite da "ossatura institucional" que é o conjunto de instituições e mecanismos de poder que não são porosos à participação e controle social. Em outras palavras, o Estado não pode ser modificado a ponto de garantir o controle social, com direito à eleição e revogação dos mandatos dos parlamentares, funcionários estatais, forças armadas e polícia. Emir Sader afirma que o Estado é um "espaço em disputa". Ele está errado. Apenas poderíamos admitir tal afirmação em termos parciais e limitados. Há espaços a serem disputados, mas não o núcleo duro do aparelho estatal. Mas ele e outros teóricos, como Carlos Nelson Coutinho, parecem convencidos de que é possível disputar e transformar o conjunto do aparelho de Estado. Parece que muitas das lições trágicas proporcionadas por experiências históricas como o governo da Unidade Popular presidido por Allende no Chile não foram aprendidas. Ou outras conclusões foram extraídas desses processos.

Para nós, as análises de teóricos como Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Lenin, Trotsky e Gramsci – cuja obra, Cadernos do cárcere, foi "seqüestrada" por Togliatti e equivocadamente apropriada para sustentar o eurocomunismo – permanecem referências decisivas para a compreensão da natureza e do papel do Estado burguês. E seus ensinamentos devem compor a base de qualquer estratégia revolucionária conseqüente que pressupõe a ruptura com o capitalismo e a construção do socialismo como uma obra da maioria e não de uma minoria substitucionista que age "em nome" da classe trabalhadora ou da sociedade.

Conclusão

Finalmente, um aspecto fundamental decorre das experiências do chamado "socialismo real". Naqueles países não havia mercado nem capital privado. A economia era controlada a partir de cima por uma burocracia que, tendo o Estado sob seu controle, determinava todo o processo produtivo. Esses regimes não caíram por conta de qualquer conspiração da CIA, mas sim por conta da dinâmica de suas economias que engendravam o mesmo tipo de contradições existentes no capitalismo de mercado. E seus governantes foram derrubados pelas mesmas massas cujos interesses supostamente representavam.

A forma estatal da propriedade não é, em si, superior à forma privada. Depende de que tipo de Estado se fala, de quem controla esse Estado e como se dá esse controle. Uma transição socialista apenas pode ser conduzida pela classe trabalhadora "alçada à condição de classe dominante", o que significa não um Estado capitalista "forte", mas um semi-Estado, baseado em órgãos democráticos – os conselhos de trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo – que exercem o poder diretamente a partir da base da sociedade.

Defender essa perspectiva revolucionária não nos permite alimentar quaisquer veleidades sobre controlar o Estado burguês para avançar rumo ao socialismo. Mesmo que tais políticas sejam chamadas de "táticas", não o são. Afinal, o stalinismo e os Partidos Comunistas também defenderam "táticas" – como a visão etapista de revolução e a "tática" da frente popular – que conduziram a derrotas trágicas que custaram não apenas a vida de milhões, mas a dramáticos retrocessos na luta pela emancipação humana.

A relevante contribuição limitada das ferramentas tecnológicas à luta revolucionária

A discussão sobre a imensa amplitude das novas tecnologias tem se tornado recorrente nos dias atuais.

O acesso à Internet tornou-se algo ao alcance de 1 bilhão de pessoas no mundo inteiro. [1]

Os celulares também se espalham não apenas pelas metrópoles, mas por quase todos os rincões do planeta.

A popularização do acesso a estas e outras ferramentas tecnológicas possui um caráter altamente contraditório: ao mesmo tempo que bilhões de pessoas podem se comunicar com outras através de computadores e celulares, a maior parte da população mundial (nos países pobres, principalmente) continua vivenciando uma exclusão digital e, sob a lógica do capital, as tecnologias são monopolizadas por grandes empresas do ramos da informática e da telefonia.

Os donos das indústrias da informática e da telefonia sofrem resistência dos movimentos e ativistas pela democratização da comunicação, como a luta pelo software livre.

A maioria dos usuários da Internet e de celular é composta em grande parte por jovens, que dedicam boa parte de seus dias ao uso de tecnologias.

De uns cinco anos para cá, as chamadas "redes sociais" (Orkut, Facebook, MySpace) viraram um fenômeno. Mais recentemente, o Twitter tornou-se a menina dos olhos das redes sociais. A rede P2P troca músicas, programas, filmes e sofre dura oposição das indústrias fonográfica e cinematográfica e da direita em sua cruzada antipirataria.

Os torpedos SMS e toques musicais viraram mania nos celulares, sendo que todos os novos modelos de celulares possuem WAP e espaço para MP3. Os blogs também se proliferaram aos montes e, assim como as redes sociais, ganharam a simpatia deste recém-blogueiro que vos fala.

O esporte, a música e o sexo estão entre as coisas mais buscadas e discutidas na Internet. Mas também há espaço para outros temas, como a política, a cultura, a educação, entre outros.

O movimento contra a repressão protagonizado por estudantes, trabalhadores, mulheres e minorias religiosas e nacionais no Irã utilizou o Twitter como ferramenta de comunicação e divulgação dos acontecimentos e mobilizações. Estranhamente, alguns chegaram a cogitar a existência de uma "revolução via Twitter" no Irã. [2]

Em menor escala, a Internet foi amplamente utilizada na divulgação de lutas contra os efeitos da crise do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos e na resistência ao golpe militar em Honduras.

No Brasil, a luta de estudantes, professores e funcionários contra a repressão e por democracia na USP ganhou grande notoriedade em junho. Relatos, fotos e vídeos pipocaram pela web, atos contra e em defesa do movimento eram divulgados nas redes sociais e listas de e-mails. [3]

Apesar da permanência da fragmentação e do isolamento entre as lutas sociais – e do refluxo do movimento de massas no caso brasileiro – vemos que não faltaram demonstrações de luta e resistência pelo mundo afora durante o primeiro semestre de 2009, que começou marcado pelas grandes mobilizações contra o massacre israelense aos palestinos na Faixa de Gaza.

Blogs e sites de esquerda estão na praça cibernética, mas em quantidade e alcance ainda incomparáveis à força do senso comum reforçado cotidianamente nos sites da mídia burguesa.

Os recursos audiovisuais que podem difundir nossas idéias de maneira inimaginável, por exemplo, ainda não são devidamente aproveitados: podcasts, vídeos, animações, entre outras possibilidades proporcionadas pelo mundo virtual.

No entanto, existem duas posturas equivocadas que persistem sendo hegemônicas entre a esquerda em relação ao tema: os "militantes jurássicos", que desprezam de forma retrógrada a relevância da utilização do mundo virtual para a luta revolucionária, e os "militantes virtuais", que supervalorizam a importância do mundo virtual, chegando ao ponto às vezes de sobrepor ilusoriamente às ações neste ao mundo real.

Faz-se extremamente necessário superar essa falsa dicotomia, não podemos negar ou superestimar a importância das ferramentas tecnológicas. Imaginemos então as dificuldades enfrentadas pelos revolucionários russos na questão da comunicação durante o início do século XX:

O blogueiro socialista inglês, Adrian Cousins, do Socialist Workers Party britânico resume bem a situação:

Os bolcheviques construíram um partido de massas e tomaram o Estado sem a ajuda de qualquer tecnologia que não fosse a imprensa (algo novo e revolucionário naquela época).Eles não utilizaram telefones para conversar entre si porque o telefone não era uma tecnologia amplamente disponível a milhões de pessoas. Não era disponível aos bolcheviques e nem às outras forças políticas e à classe dominante.

Mas se os telefones estivessem amplamentre disponíveis entre os trabalhadores de Petrogrado, os bolcheviques não seriam capazes de tomar o poder sem a utilização de telefones. Todas as outras forças políticas usariam telefones, incluindo os mencheviques, a burguesia e os monarquistas. Não utilizando tecnologias disponíveis para se comunicar da forma mais ampla e massiva possível, os bolcheviques abandonariam o espaço para outros que utilizariam a nova tecnologia como uma arma contra os bolcheviques.
[4]

Há que se tomar o cuidado de não se deixar levar por um "conspiracionismo", mas é verdade que não podemos esquecer da segurança e confiar ingenuamente na idéia de que não há vigilância das ações dos movimentos sociais pela Internet.

Também é óbvio que a transformação revolucionária da sociedade não se dará por SMS, e-mail, scrap ou petition online, nada substitui a atividade revolucionária no cotidiano do mundo real. Não podemos cometer o erro de superestimar e nos deixar consumir pelo mundo cibernético em detrimento do contato presencial na luta e na vida e acabar caindo em uma espécie de "militância virtual".

Mas desprezar a relevância dos computadores e celulares no capitalismo contemporâneo em tempos de Orkut, SMS, YouTube e Twitter é cegueira. Se o mundo cibernético fosse inútil e irrelevante, não estaríamos aqui agora entre cliques em teclados e mouses lendo e escrevendo coisas.

Os socialistas têm que defender a luta pelo pleno e irrestrito acesso às tecnologias e à comunicação como um todo, sem entraves propostos por reacionários como Eduardo Azeredo e Hélio Costa, e saber aproveitar e utilizar as ferramentas tecnológicas existentes como armas a seu favor.

Não apenas para fazer a disputa de idéias e dialogar com jovens, trabalhadores e outros setores populares da sociedade, mas também como um importante suporte para organizar a luta pela libertação humana.

O escritor e músico Gil Scott-Heron cantava que "a revolução não será televisionada", mas isso não podemos assegurar. [5] Temos a certeza de que ela não virá por zappings televisivos ou pela banda larga. Um e-mail, um SMS e um vídeo no YouTube são detalhes perto da importância da articulação promovida em reuniões e mobilizações, mas detalhes que podem fazer a diferença para nos juntarmos nas lutas e ruas do mundo real pela construção de uma sociedade livre e radicalmente democrática.

Notas:

[1] Internet passa de 1 bilhão de usuários, segundo a comScore, notícia dada pela InfoWester Notícias em janeiro de 2009:
http://www.infowester.com/noticias/internet-passa-de-1-bilhao-de-usuarios-segundo-a-comscore

[2] Vídeo feito por estudantes sobre a dura repressão policial aos grevistas em junho de 2009:
http://www.youtube.com/watch?v=SF71x_cMWy0

[3] America’s Iranian Twitter Revolution, artigo de Max Forte em junho de 2009:
http://openanthropology.wordpress.com/2009/06/17/americas-iranian-twitter-revolution

[4] A militant network of collaborating agents, artigo de Adrian Cousins em janeiro de 2009:
http://leninism2point0.blogspot.com/2009/01/role-of-online-organ-should-not-be.html?widgetType=BlogArchive&widgetId=BlogArchive1&action=toggle&dir=open&toggle=YEARLY-1199145600000&toggleopen=MONTHLY-1246402800000,MONTHLY-1243810800000

[5] The revolution will be not televised, música de Gil Scott-Heron:
http://www.youtube.com/watch?v=p43YYovonS0

segunda-feira, 20 de julho de 2009

21 anos de "Hip-hop – cultura de rua"

Em 2009, completam-se 21 anos do lançamento da coletânea Hip-hop – cultura de rua, o primeiro registro fonográfico do rap brasileiro.

Lembro a primeira vez que ouvi Corpo Fechado, de Thaíde e DJ Hum, há uns cinco anos atrás no Espaço Rap, programa da Rádio 105 FM. Não simpatizava muito com o rap brasileiro e, por desconhecimento, tinha Sabotage até então como minha única referência no rap nacional.

Mas Corpo Fechado me marcou pela "crônica-rap" de Thaíde e pela crueza e originalidade dos scratches de DJ Hum e contribuiu para que futuramente eu fosse rever muitos dos conceitos que tinha sobre a cena brasileira do rap e do hip-hop.

O ritmo e a poesia, que nomeavam o rap (rhythm and poetry, em inglês), fundiam-se de forma autêntica e ousada nas mãos e nas vozes de dois jovens negros e pobres da periferia paulistana. Alguns versos da música ficaram gravadas na minha memória:

(...)

Eu já te disse o meu nome
Meu nome é Thaíde
Meu corpo é fechado e não aceita revide

(...)

Vivo nas ruas com minha liberdade
Fugi da escola com 10 anos de idade
As ruas da cidade foram minha educação
A minha lei sempre foi a lei do cão
Não me arrependo de nada que eu fiz
Saber que eu vou pro céu não me deixa feliz

(...)

Tenho o coração mole, mas também sou vingativo
Portanto, pense bem se quer aprontar comigo
Se achas que esse neguinho sua bronca logo esquece
Então não perca tempo, pergunte a quem conhece

Além de Thaíde e DJ Hum (expoentes do rap brasileiro nos anos 80 e 90), o álbum contou com a participação de MC Jack, Código 13 e outros precursores do hip-hop brasileiro e a produção de Nasi (sim, ele mesmo: o Nasi do IRA!) e Skowa e foi, definitivamente, um marco na história do hip-hop e da música negra no Brasil.

Hip-hop – cultura de rua tem um lado festivo, algo que faz parte do hip-hop desde sua origem e difusão das block parties ("festas no quarteirão") em guetos de Nova Iorque aos bailes black em São Paulo e no Rio de Janeiro nos quais a diversão era a principal característica, mas preza principalmente pela denúncia das mazelas e da ausência de perspectivas que ainda atingem os jovens negros e pobres das periferias de grandes cidades brasileiras.

É impossível pensar na força que o hip-hop brasileiro possui hoje sem lembrar da enorme importância de Hip-hop – cultura de rua na trajetória historicamente contestadora do rap e do hip-hop no Brasil.

Corpo Fechado, de Thaíde e DJ Hum:
http://www.youtube.com/watch?v=W3lEmx2fVAY

Hip-hop – cultura de rua para download (73,6 MB):
http://rapidshare.com/files/43330486/HIP_HOP_CULTURA_DE_RUA.rar.html

Fora Sarney: para além da transparência, a necessidade da crítica à democracia liberal

A trajetória reacionária e corrupta de José Sarney está de longe de ser uma novidade.

Após carreira como parlamentar e governador do Maranhão na ARENA (o partido do regime militar) e no PDS (sucessor da ARENA nos anos 80 que daria origem aos retrógrados PFL e PPB), Sarney filiou-se ao PMDB e foi indicado como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves na última eleição indireta do regime que marcaria o fim da ditadura militar depois de um amplo movimento das "Diretas Já!".

Com sérios problemas de saúde que o acompanhavam, Tancredo morreu na véspera da posse, e Sarney tornou-se o primeiro presidente pós-ditadura militar. No contexto do neoliberalismo preconizado por Thatcher e Reagan, o governo Sarney foi marcado pelos surtos de hiperinflação e por um forte arrocho salarial – no que ficou conhecido como "salário de fome".

Sarney deixou o governo em 1990 e passou a disputar as eleições ao Senado pelo Amapá, o Brasil seguia vivenciando (e, em menor escala, continua vivenciando) uma abissal concentração de renda e grandes problemas sociais e econômicos.

O Maranhão, que durante 40 anos consecutivos foi governada por Sarney e seus apadrinhados políticos, sempre situou-se entre os estados com mais mazelas sociais e econômicas: alta mortalidade infantil, enorme concentração fundiária e, por diversas vezes, o estado com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no Brasil. [1]

O PT entre a cruz e a espada

A eleição de Sarney à presidência do Senado foi uma sucessão da resposta dada pela base do governo Lula à crise instaurada após as denúncias de corrupção que envolveram Renan Calheiros e levaram à sua renúncia.

Desde o início do governo Lula, o Senado brasileiro teve quatro presidentes diferentes: José Sarney, do PMDB (janeiro de 2003 a fevereiro de 2005; desde fevereiro de 2009); Renan Calheiros, do PMDB (fevereiro de 2005 a outubro de 2007); Tião Viana, do PT (outubro de 2007 a dezembro de 2007); Garibaldi Alves, do PMDB (dezembro de 2007 a fevereiro de 2009).

Com exceção da breve passagem de Tião Viana, o PMDB sempre esteve na presidência do Senado desde o início do governo Lula exercendo o papel de principal partido da base do governo Lula no Congresso Nacional, apesar da ínfima convergência político-programática com o PT da fundação deste em 1980 até meados dos anos 2000.

Ou seja, o PMDB cumpre papel crucial para assegurar a tal "governabilidade" preconizada pelo PT, uma realpolitik à brasileira da pior espécie que alimenta o fisiologismo e dá vazão à controversa aliança do governo - apoiado por amplos setores da classe trabalhadora da cidade e do campo e pela maioria dos movimentos sociais - com o agronegócio e o grande capital.

À medida que o socialismo foi jogado para escanteio, o "pilar ético" e a "transparência" tornaram-se as principais características autoproclamadas pelo PT na gestão de administrações municipais e estaduais nos anos 90.

O governo Lula sempre buscou se distanciar das sucessivas crises que abatiam o Congresso Nacional, como se a sua consciente e retrocedente opção por uma composição de governo ideologicamente confusa (com partidos reconhecidamente direitosos, como o PP e o PTB, e legendas de aluguel, como o PR, o PRB etc.) não tivesse nenhum tipo de responsabilidade.

Porém, desde o surgimento da crise política em 2005, desencadeada pelos escândalos de corrupção que envolveram dirigentes e parlamentares da Articulação (tendência interna majoritária no PT) e grande parte da base aliada do governo Lula, não foi por acaso que expressões como "pilar ético" e "transparência" pouco foram utilizadas pelos dirigentes do PT.

Em 2001, José Genoíno já alertava uma preocupação sobre a relação entre o PT e as mazelas da ordem liberal-burguesa que, não ocasionalmente, veio a se tornar realidade em circunstâncias posteriores:

Na medida em que o Estado brasileiro está viciado por longa tradição patrimonialista e particularista, nem sempre a falta de moralidade e transparência reveste-se de caráter ilegal. A própria estrutura administrativa e legal do poder está impregnada de falta de transparência, de imoralidade e de privilégios. Quanto mais o PT vai ocupando essa estrutura inerentemente corruptora, mais será desafiado a reformá-la profundamente, recusando práticas sacramentadas na memória e na história política brasileiras. Caso contrário, sucumbirá a essa estrutura e será arrastado para a vala comum dessa tradição. [2]

A sinuca de bico da "moralização da política"

A cada eleição, vemos a idoneidade e a integridade serem propaladas como "virtudes" pelo eleitorado e pelos candidatos. A discussão e o combate (mesmo que apenas retórico, na maioria das vezes) à corrupção não é de hoje.

Puxando a sardinha para o seu lado, a direita também exige ética e transparência. Na disputa presidencial de 1960, Jânio Quadros utilizou a "vassourinha" como slogan de sua campanha – para, pretensamente (e, obviamente, ficaria apenas na pretensão), varrer a corrupção. A UDN de Carlos Lacerda bradava ininterruptamente contra a corrupção e "imoralidade", tentando associá-la ao getulismo (seu principal rival político).

Nos dias atuais, não é raro ver parlamentares e dirigentes do PSDB, DEM, PMDB, PP, PTB, PR, entre outros partidos de direita e legendas de aluguel, exigindo a moralização da política. A oposição de direita (PSDB, DEM e PPS) ao governo Lula insinua que a corrupção atingiu seu ápice no atual governo.

Mas não há como esquecer o obscuro processo de privatizações e outras denúncias de corrupção que marcaram o governo FHC e os governos estaduais e administrações municipais geridos por PSDB e DEM, como os governos Covas e Alckmin em São Paulo (este último com o recorde de 69 CPIs engavetadas) e os últimos anos da desastrosa e reacionária gestão de César Maia na prefeitura carioca.

De forma limitada e equivocada, a ética é identificada pelo senso comum como uma conduta moral pessoal: "tal político é ético", "esse partido tem ética".

No entanto, a ética – na acepção revolucionária – está intrinsecamente ligada à práxis, e, como tal, deve ser concebida de forma política, já que possui suas implicações político-práticas, em sua interação na luta de classes como totalidade das relações sociais. Um dos elementos-chave da "ética revolucionária" (não guiada por princípios morais, e sim políticos), por exemplo, é a solidariedade ativa (e não contemplativa) às lutas da classe trabalhadora.

Em sua contribuição ao I Seminário Internacional do PSOL, Pedro Fuentes, dirigente do Movimento Esquerda Socialista (MES, tendência interna do PSOL), diz:

Dentro do terreno democrático tem uma grande importância o problema da corrupção, que tem sido praticamente sistêmico nesta fase de decadência e lumpenização e que atinge a todos os países – salvando as diferenças, inclusive aqueles que são independentes como Venezuela. [3]

Em uma época de crise do capitalismo global (econômico-financeira, energética, ambiental e alimentar), o combate à corrupção não pode ser o principal eixo de luta dos socialistas. Não se trata desprezar a importância tática do combate à corrupção. Mas sim de questionar a maneira como se dá este combate. Temos que enxergá-la como mais uma questão política, ou seja, uma questão de classe.

Os socialistas e o combate à corrupção

Ao analisar criticamente o Partido Trabalhista britânico, o marxista revolucionário palestino Tony Cliff costumava dizer a seguinte frase sobre a questão da corrupção:

Não é o poder que corrompe, mas sim a ausência do poder. [4]

E realmente procede: não podemos pensar a corrupção de forma individualizada no sentido de uma "moral pessoal", mas como resultado direto das desigualdades – econômicas, sociais e políticas – no capitalismo e sua força ideológica baseada em valores permanentemente preenchidos por individualismo e competitivismo.

Evidentemente, a corrupção não pode ser combatida em um sentido abstrato. Os socialistas devem trazer à tona denúncias de corrupção que expõem a direita e o reformismo, não em um sentido moralista, mas interligá-las ao regime político que dá sustentação ao capitalismo: a democracia liberal.

Mesmo que a correlação de forças não seja favorável, os socialistas devem envolver-se na atual discussão sobre a necessidade de uma reforma política e levá-la bem além dos temas principais como o "financiamento público de campanha" e a "lista fechada".

A imunidade parlamentar, por exemplo, não é obra do acaso, é justamente uma expressão do caráter de classe do Estado capitalista, pois explicitamente serve aos interesses dos mais ricos (latifundiários, grandes empresários industriais, da mídia etc.), minoria da população, representados majoritariamente no parlamento. Ou seja, a correlação de forças pode mudar conforme o contexto histórico, mas o parlamento segue sendo um aparelho de Estado a serviço da classe dominante: a burguesia.

E, dificilmente, tais aberrações antipopulares mudarão por ação dos próprios parlamentares senão pressionados por mobilizações populares em defesa de uma autêntica democracia. As brechas e os mecanismos da democracia liberal permitem a ausência de uma ampla e massiva participação da maioria da população em decisões que realmente influenciem os rumos da sociedade.

Qual o controle social exercido pela maioria da sociedade sobre os mandatos parlamentares, por exemplo? Nenhum realmente decisivo, não existem mecanismos de controle social e os mandatos parlamentares não são revogáveis na democracia liberal. O eleitorado exerce um papel passivo, elegendo parlamentares e governantes de dois em dois anos que, por diversas vezes, repetem-se no poder.

A representação da democracia liberal é historicamente restrita e antidemocrática: por poucas vezes, em relação à majoritária burguesia, trabalhadores urbanos, camponeses, indígenas, negros, mulheres, jovens e o povo pobre tiveram representantes, de fato, comprometidos em defesa de seus interesses na história da democracia liberal brasileira.

Tal situação não diz respeito apenas ao Brasil e aos tempos atuais. Em diferentes países e circunstâncias históricas, a minoria economicamente poderosa detém o poder de decidir os rumos da vida social, econômica e política da sociedade em detrimento da maioria.

Entretanto, a história nem sempre foi assim e nada garante que o será. Houve lutas, revoluções, resistência e experiências radicalmente democráticas, mesmo que de vida curta: a Comuna de Paris em 1871, a Revolução Russa e a União Soviética (1917-1924), a Revolução Alemã (1918-1924), a Revolução Espanhola em 1936, a Revolução Húngara em 1956, a Primavera de Praga e o Maio Francês em 1968, o poder popular chileno no início dos anos 70, a Revolução dos Cravos em 1974, a Revolução Iraniana em 1979, entre outras experiências.

Os soviets (conselhos, em russo) na Rússia, os conselhos operários na Alemanha, na Hungria e na Espanha, os cordones no Chile e as shoras no Irã eram instrumentos de poder operário e popular que contavam com ampla e massiva participação da maioria da sociedade e decidiam os rumos e diferentes aspectos da vida social (a produção econômica, o poder político, os serviços públicos etc.) e avançariam na transição de uma sociedade profundamente desigual, injusta e com pretensa liberdade que era a sociedade capitalista para uma sociedade igualitária, justa e plural, sem Estado nem classes, em que a liberdade humana fosse algo concreto: uma sociedade comunista, bem diferente do que aconteceu nos regimes do "socialismo real" - uma expressão caricatural que nada a tinha a ver socialismo, em que os trabalhadores simplesmente não tinham nenhum poder de decisão.

Mais recentemente, levantes e rebeliões populares no México, na Bolívia e no Equador, em diferentes situações, também proporcionaram situações semelhantes com a conformação de conselhos e assembléias populares em nível local.

É claro que tal experiência, infelizmente, não está na esquina e não será imediamente transplantada à atual situação política brasileira, como pensam cegamente alguns setores da esquerda de forma sectária. Ainda é necessário superar o refluxo do movimento de massas e a fragmentação e o isolamento das lutas sociais para que a esquerda e os movimentos sociais saiam da condição defensiva, e isto não se dará de forma automática e mecânica.

Devemos defender a saída imediata de Sarney da presidência do Senado. Mas sua provável substituição por outro político conservador – assim como aconteceu na campanha "Fora Renan" que levou à renúncia de Renan e sua substituição interina por Tião Viana e, posteriormente, definitiva por Garibaldi Alves – de nada adiantaria.

A potencial força do movimento reside na crítica ao caráter de classe da democracia liberal e a proposição de uma alternativa concreta: a necessidade de superar a democracia liberal-burguesa que nada tem de democrática e forjar uma autêntica democracia de baixo para cima em que os trabalhadores da cidade e do campo exerçam o poder de fato, ou seja, uma democracia socialista.

Notas:

[1] Paralelo entre rankings dos estados brasileiros nos IDHs de 1991 e 2000 feito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento:
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH-M%2091%2000%20Ranking%20decrescente%20de%20Estados%20(pelos%20dados%20de%202000).htm

[2] Até onde vai a moralidade do PT?, artigo de José Genoíno no Correio Braziliense em janeiro de 2001:
http://gab.miltontemer.sites.uol.com.br/tribuna_debates/183.html

[3] Um novo período na situação mundial, contribuição de Pedro Fuentes ao Seminário Internacional do PSOL que será realizado em agosto de 2009:
http://seminariocrise.files.wordpress.com/2009/04/um_novo_periodo_pedro_fuentes.pdf

[4] Labour’s addiction to the rubber stamp, artigo de Tony Cliff em 1967 em que critica as ilusões trabalhistas na possibilidade de uma "via parlamentar" ao socialismo:

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A concentração, a indústria do futebol e o capitalismo

Antes da segunda partida da final da Copa do Brasil entre Internacional e Corinthians em Porto Alegre, que após empate de 2 a 2 asseguraria ao Corinthians a conquista do título, voltou à tona uma questão cuja discussão eu já havia compartilhado com outros amigos e companheiros que também são torcedores e amantes do futebol: a concentração.

Em uma coletiva de imprensa, Ronaldo reclamou do excesso de concentrações antes de partidas decisivas e citou o exemplo do Barcelona para mostrar como tal situação é tratada pelos clubes europeus:

O título da Copa do Brasil é importante também porque vai nos dar tranquilidade para o segundo semestre, espero que com isso diminua o tempo de concentração. Em seis meses este ano, acho que ficamos três concentrados. Itu, jogos. Nem temos mais brincadeiras para fazer... É muito tempo concentrado, sem ficar com a família. Eu gostaria de passar mais tempo em casa no segundo semestre. Na Europa não existe isso. O Barcelona, campeão da Champions [Liga dos Campeões], se apresentava no dia do jogo. Só na final precisou chegar um dia antes porque a Uefa quem mandou. [1]

A reclamação de Ronaldo suscitou uma interessante e polêmica discussão entre os jornalistas, jogadores, técnicos e dirigentes de futebol nos programas de rádio e TV e sites e blogs da mídia esportiva e, principalmente, entre os torcedores. A pergunta feita por todos era: afinal, a concentração de profissionais do futebol antes de uma partida é realmente necessária? Se sim, até que ponto? Se não, quais podem ser as alternativas?

Não encontrei registros sobre a história da concentração do futebol. Mas, certamente, ela acompanha a trajetória do futebol brasileiro e mundial desde o início de sua profissionalização.

Antes da profissionalização do futebol brasileiro, os jogadores dividiam-se entre o futebol, como uma oportunidade de lazer e prática esportiva, e seus respectivos empregos. A grande maioria dos jogadores era formada por operários e estudantes.

Como bem coloca Chris Bambery em Marxism and sport, texto escrito em uma edição da International Socialism Journal de 1996, o lazer está diretamente ligado à exploração do trabalho:

O lazer é encarado como algo distinto do trabalho, algo que é ganho como recompensa por mais um "dia justo de trabalho". O marxista polonês Franz Jakubowski argumenta: "A alienação do trabalho tem o efeito de alienar o homem de si mesmo. A vida social torna-se meramente um meio de autopreservação humana". Conseqüentemente, o 'tempo livre' não é realmente 'nosso tempo'. [2]

A profissionalização do futebol brasileiro ocorrida na transição dos anos 20 para os anos 30, no contexto da Grande Depressão, da ascensão do nazi-fascismo na Europa e da chegada de Getúlio Vargas à presidência do Brasil, permitiu a sua popularização, algo repudiado por clubes tradcionais da elite que até então dominavam o futebol.

Por outro lado, a profissionalização do futebol obviamente não estaria imune aos diversos problemas sociais existentes na época. Os jogadores de futebol não deixavam de se manter na condição de trabalhadores, mesmo que, evidentemente, não-convencionais em relação à grande maioria dos trabalhadores da cidade e do campo. Assim como a classe operária brasileira, a enorme maioria dos jogadores recebia baixos salários e possuía parcos direitos sociais.

Voltando à questão inicial, há uma evidente influência militar na questão da concentração. Aliás, a educação militar teve um papel crucial para a formação e o desenvolvimento do esporte moderno. Assim como os guerreiros na Antigüidade e os soldados em tempos contemporâneos preparavam-se para grandes batalhas, os jogadores de futebol passam dias e mais dias enfurnados em hotéis durante praticamente toda semana da temporada, seja antes de partidas decisivas ou não.

O saudoso João Saldanha, técnico da Seleção Brasileira antes da Copa de 1970, jornalista, botafoguense fanático e militante do PCB, costumava dizer uma frase que se tornou folclórica: "Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária seria campeão invicto".

Mesmo que cômica, a frase faz sentido. Mas, afinal, ao que interessa a concentração? Certamente, muitos dirão que serve para se alcançar o melhor rendimento possível, em termos físicos, táticos, técnicos e psicológicos, de uma equipe para a conquista de vitórias e títulos e a formação de times vencedores. Segundo a idéia, este seria o autêntico sentido do futebol profissional e quanto mais ricos forem e maior visibilidade midiática e torcida tiverem os clubes de futebol mais razão terão em agir dessa forma.

Os jogadores, tão humanos quanto qualquer pessoa com suas limitações e habilidades, tornam-se verdadeiros "corpos-máquina" através do seu futebol e mercadorias com um determinado valor de troca sujeitas a uma incessante circulação. Buscam a todo momento superar os adversários e suas próprias limitações. O competitivismo, uma característica ideológica da sociedade capitalista, torna-se algo supostamente inerente ao futebol e ao esporte em geral.

Chris Bambery cita uma declaração de um jogador inglês sobre a sua condição:

O antigo capitão do Tottenham Hotspur, Mike England, disse em The Glory Game, livro de Hunter Davis: "Eu nunca digo que irei jogar futebol. É um trabalho". Ninguém estava jogando na Eurocopa, nas Olimpíadas ou na última Copa do Mundo.

No entanto, há um questionamento que não foi lançado à discussão: a quem realmente interessa este competitivismo levado ao extremo? Aos milhões de torcedores, cuja identificação com os clubes vai para além das quatro linhas e é permeada pelas relações sociais, ou à indústria do futebol controlada por alguns poucos dirigentes de clubes e federações e donos de grandes corporações?

Torna-se clara a importância crucial de uma questão de fundo que se relaciona diretamente à idéia dos jogadores como "corpos-máquina" e mercadorias: a força e o poder da indústria do futebol no Brasil e no mundo, a mesma que movimenta valores astronômicos em transferências e salários de alguns poucos jogadores, uma realidade minoritária no futebol brasileiro e mundial restrita aos jogadores de clubes grandes e médios das primeiras divisões dos principais campeonatos do mundo e, mais recentemente, alguns países do Leste Europeu e do Oriente Médio.

Uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas em 2000 avaliava que o mercado do futebol mundial movimentava 250 bilhões de dólares. [3] Para que se tenha uma idéia, a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) lançou uma avaliação sobre a situação da fome no mundo (que atinge entre 950 milhões e 1 bilhão de pessoas) na qual coloca que são necessários aproximadamente R$ 58 bilhões de reais para o combate efetivo à fome. [4]

Outro argumento recorrente em defesa da permanência da concentração é o comportamento supostamente "inadequado" de alguns jogadores de futebol. Após a declaração polêmica de Ronaldo, vi Mauro Silva, jogador do Bragantino, do La Coruña e campeão da Copa do Mundo de 1994 que se aposentou recentemente, defender este argumento no Bate-Bola, programa da ESPN Brasil. Segundo ele, para que se flexibilize a rigidez do atual sistema de concentração, como acontece na Europa, a cultura dos jogadores brasileiros em relação à vida noturna e à alimentação adequada de um atleta também precisa ser mudada.

Ou seja, os jogadores (jovens, em sua maioria, que dedicaram boa parte de sua adolescência e juventude ao sonho de se tornarem jogadores profissionais) precisam comportar-se de forma disciplinada como autênticos atletas, ou melhor, "corpos-máquina". Vários grandes craques do futebol mundial mostraram que nem sempre a concentração e a rígida disciplina são premissas para o alto rendimento: Romário e Maradona são alguns dos mais recentes exemplos.

Será que a exagerada glamourização da vida fora de campo dos jogadores não é justamente um reflexo e um momentâneo alívio das constantes pressões impostas pela indústria do futebol, assim como o futebol amador no início do século XX era forma dos operários extravasarem toda a pressão da rotina de trabalho? Penso que sim.

Após o surgimento da discussão, a emblemática experiência da Democracia Corintiana de 1982 a 1984 foi automaticamente relembrada. Naquele período, o Corinthians era presidido por Waldemar Pires, adversário do folclórico Vicente Matheus, e tinha como diretor de futebol o sociólogo Adilson Monteiro Alves. O elenco corintiano era composto por jovens talentos, como Ataliba e Casagrande, e jogadores identificados com a torcida corintiana, como Zé Maria, Wladimir e Biro Biro e tinha como Sócrates como sua principal referência dentro e fora de campo.

Para quem ainda não conhece ou ouviu falar sobre tal experiência, a Democracia Corintiana consistia em uma embrionária experiência de autogestão: os jogadores (titulares e reservas), os funcionários e a comissão técnica do departamento de futebol profissional corintiano discutiam e decidiam coletivamente quase todos os assuntos que diziam respeito ao seu funcionamento, desde transferências de jogadores até a rotina de treinos, passando pela questão da concentração.

A concentração não chegou a ser definitivamente abolida durante a Democracia Corintiana. No entanto, os jogadores tinham a autonomia de sair da concentração em alguns momentos e, antes de algumas partidas, podiam dormir em suas casas com suas respectivas famílias e reapresentar-se no mesmo dia da partida. Dois dos principais lemas da Democracia Corintiana eram "Ganhar ou perder, mas sempre com democracia" e "liberdade com responsabilidade", em claras alusões à luta contra a ditadura militar e à autodisciplina.

Tudo isto acontecia em uma época marcada pela luta contra a ditadura militar e em um grande ascenso de lutas do movimento operário com a deflagração das greves do ABC no final dos anos 70 e a posterior fundação da CUT e do PT. O movimento também foi capaz de transformar a consciência boleira. Alguns jogadores de futebol, como Afonsinho, Reinaldo, Sócrates, Wladimir e Casagrande - refletindo o ascenso do movimento - identificaram-se com as idéias de esquerda, engajaram-se na luta contra a ditadura e começaram a lutar pelos direitos dos jogadores, como o fim do passe e melhores condições de trabalho.

Como disse anteriormente, a experiência de autogestão no futebol promovida pela Democracia Corintiana era embrionária. Portanto, enfrentou contradições, divergências internas entre os jogadores, a comissão técnica e a diretoria e entre os próprios jogadores e, pelas limitações colocadas por suas próprias contradições, não foi capaz de avançar em importantes questões, como a luta contra o racismo no futebol.

Após a vitória de uma ala conservadora nas eleições presidenciais do Corinthians e a derrota da emenda Dante de Oliveira (que restituía as eleições diretas no Brasil), a Democracia Corintiana terminou em 1984. Pouco antes, Sócrates havia prometido que não ficaria no futebol brasileiro caso a emenda Dante de Oliveira fosse derrotada e transferiu-se para a Fiorentina da Itália. [5] Alguns jogadores que vivenciaram aquela experiência continuaram jogando no clube, mas em condições totalmente distintas.

Em termos financeiros e de títulos, a Democracia Corintiana foi uma das épocas mais vitoriosas do Corinthians, com a conquista de dois títulos do Campeonato Paulista, em 1982 e 1983, e o saldo positivo de 3 milhões de dólares em caixa, mostrando que a transformação na gestão e administração da equipe não comprometeu a eficiência técnica da equipe dentro das quatro linhas.

Portanto, retornando à questão central anteriormente colocada: a quem interessa a permanência da concentração? A permanência da concentração atende prioritariamente às necessidades da indústria do futebol, garantindo um competitivismo exacerbado a partir da ênfase cada vez maior no desempenho físico e tático do que técnico dos jogadores e maiores lucros aos clubes, federações e empresas controladas por poucos em detrimento de uma ampla participação coletiva de profissionais e torcedores nos rumos do futebol.

De forma sintética, Chris Bambery explica como se dá a relação entre o esporte (entre eles, o futebol, principalmente) e o capitalismo:

Portanto, o esporte está totalmente integrado em uma interação entre rivalidade interestatal, produção capitalista e relações de classe. Como uma ideologia, difundida pela mídia em uma enorme escala, o esporte é parte e parcela da ideologia burguesa dominante. A estrutura hierárquica do esporte reflete a estrutura social do capitalismo e seu sistema de seleção competitiva, promoção, hierarquia e ascensão social. A competitividade e os recordes, forças que movimentam o esporte, são reflexos das forças que movimentam a produção capitalista.

A luta pela abolição da concentração é procedente e justa. Obviamente, a reclamação de Ronaldo não aponta neste sentido. Mas a discussão vai bem mais além da questão da concentração: mostra que a passividade de jogadores frente às pressões colocadas pela indústria do futebol possui seus limites. A luta pela abolição do passe e a experiência da Democracia Corintiana mostram que o descontentamento de jogadores pode se transformar em ações concretas e, junto com um ascenso do movimento de massas, pode expressar a radicalização do movimento.

Mesmo com o atual momento de refluxo e fragmentação das lutas sociais no Brasil, talvez seja a hora de entrar em pauta a inciativa de construir uma frente de luta unitária entre um setor dos profissionais do futebol (jogadores, técnicos e assistentes), na luta por seus direitos como trabalhadores, e torcedores, que sofrem na pele e no bolso os efeitos da mercantilização do futebol com os ingressos caros e ações de repressão e violência policial.

Ainda assim, o futebol é um elemento da cultura popular brasileira e sujeito às contradições sociais colocadas pelo capitalismo brasileiro e global. Um projeto de transformação revolucionária da sociedade brasileira, que vise dialogar e se inserir massivamente entre os trabalhadores e outros setores populares do campo e da cidade, terá que lidar e apontar alternativas concretas a estas mazelas e contradições expressadas no futebol, no esporte em geral e outras esferas da vida social e cultural.

Apenas dessa forma, o questionamento à sociedade em que vivemos e a clareza sobre a necessidade do engajamento na luta contra a exploração e a opressão da sociedade capitalista terão condições de sair da marginalidade social e política e trabalhadores do futebol, torcedores e socialistas perceberão que o futebol está longe de andar separado da política, pelo contrário: os problemas vivenciados por trabalhadores e torcedores de futebol refletem diretamente as contradições do capitalismo.

E para que a luta pela transformação do futebol, de uma fonte lucrativa para poucos em uma recreação física e cultural realmente acessível a todos os homens e mulheres, seja concretizada e consolidada não apenas "pela metade", de forma frágil e vulnerável, deve necessariamente unir-se à luta pela emancipação humana e construção de uma sociedade igualitária, justa, livre e radicalmente democrática, uma sociedade socialista.

Notas:

[1] Ronaldo critica períodos de concentração no Corinthians, notícia dada pelo iG Esporte em junho de 2009:
http://esporte.ig.com.br/futebol/2009/06/29/ronaldo+critica+periodos+de+concentracao+no+corinthians+7024966.html

[2] Marxism and sport, artigo de Chris Bambery na International Socialism Journal em 1996:
http://pubs.socialistreviewindex.org.uk/isj73/bambery.htm

[3] Entendendo o futebol como um negócio: um estudo exploratório, artigo de Marvio Pereira Leoncini e Márcia Terra da Silva em 2005:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-530X2005000100003

[4] FAO: 925 milhões de pessoas passam fome no mundo, notícia dada pela Agence France-Presse em setembro de 2008:
http://afp.google.com/article/ALeqM5hybdB_htWjfic5RHOEWf3JFPikXg

[5] Diretas e democracia corintiana, artigo de Sócrates em 2004:
http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=2207

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Michael Jackson e a questão racial

Fiz a tradução de um artigo de Yuri Prasad, no Socialist Worker, que faz uma relação procedente (na minha visão) entre a talentosa e problemática trajetória de Michael Jackson e os ascensos e refluxos da luta contra o racismo bastante arraigado na sociedade norte-americana, inclusive na música:

Michael Jackson: um homem aprisionado por uma máscara

[Yuri Prasad]

Yuri Prasad mostra como apesar de sua enorme popularidade, Michael Jackson expressava as contradições do racismo na indústria musical

As palavras da música Young, Gifted and Black (algo como "jovem, talentoso e negro"), de Nina Simone, poderiam ter sido escritas especialmente ao Jackson Five. Quando a primeira canção do grupo, I Want You Back, alcançou as paradas de sucesso em 1969, os irmãos pareciam resumir o anseio de orgulho negro que surgia do movimento por direitos civis.

O Jackson Five combinava a experiência de vida – derivada da sua criação em bairros operários e populares de Indiana – com uma respeitabilidade considerável. Eles vestiam-se de forma original, mas não de forma tão diferente que não pudessem ser copiados, e deixavam seu cabelo no estilo afro de forma natural.

Seus passos minuciosamente coreografados tinham a intenção de encantar mais com o jeito inocente infanto-juvenil do que com a sensualidade. E desde o início, Michael, um garoto de 10 anos, era a estrela do grupo.

Dois anos depois, o Jackson Five tinha um desenho animado e uma série de revistas adolescentes dedicadas à banda e todo disco que a banda lançava vendia aos milhões.

Era uma "banda-família" que atingia milhões de pessoas que até então raramente tinham visto negros também fazendo sucesso e em ascensão econômica graças a isso.

Fenômeno

Na década seguinte, Michael estava no auge de sua carreira. Thriller, seu álbum produzido em 1982, foi o álbum mais vendido de todos os tempos e transformou a música popular e, em particular, os videoclipes musicais.

Em todos os lugares, as crianças rapidamente começaram a imitar seu estilo. Sua renovada popularidade transcendeu as linhas da questão racial, algo que o Jackson Five não conseguiu cruzar.

Mas embora o novo visual de Michael fosse teatralmente mais estranho que o anterior, sua popular associação com o "orgulho negro" passou por uma transformação.

Em uma época que as conquistas do movimento por direitos civis estavam ameaçadas e o slogan sobre a beleza negra, "black is beautiful", em refluxo, as repetidas transformações na pele e cirurgias plásticas de Michael pareciam representar, na visão de muitos, um homem desesperado para se tornar branco.

Alguns comentaristas associam esta automutilação à sua distorcida personalidade. Eles dizem que a fama precoce fez com que ele se rejeitasse e fosse à busca de uma beleza inalcançável.

Outros insistem na idéia que as cirurgias representavam nada mais que uma extensão de suas mudanças de estilo.

Essas suposições superficiais esquecem que o racismo continua formando as idéias de beleza nas quais tons de pele mais claros ainda são apresentados como ideais e omitem a possibilidade de Michael querer se transformar em um homem que era tanto negro como branco.

E caso seja este o caso, existe mais do que influência em relação à história de Tamla Motown, a gravadora que ajudou a lançá-lo ao estrelato.

Fundada em Detroit em 1959, a Motown estava localizada em um distrito habitado pela classe trabalhadora negra no norte da cidade e durante uma série de anos atraiu centenas de jovens talentos locais e lançou vários deles ao estrelato.

Smokey Robinson and The Miracles, Diana Ross and The Supremes, Marvin Gaye e Tammi Terrell, Martha Reeves and The Vandellas, The Isley Brothers e The Four Tops são alguns exemplos, juntos conseguiram se tornar um fenômeno musical que abalou os EUA e contribuiu para a ruptura das barreiras raciais na música.

Quase tudo sobre a Motown envolvia a questão negra. O dono da gravadora, Berry Gordy, é negro, assim como era a maioria de seus artistas. Os principais compositores da gravadora eram negros, as bandas de apoio eram negras e até os funcionários e contadores da Motown eram negros.

A única coisa que não era exclusivamente negra era o público da Motown e isso era algo que Gordy sabia muito bem.

Ele decidiu que o slogan da Motown deveria ser "o som da América jovem" e para alcançar o máximo impacto e bastante dinheiro, era muito importante que seus atos e projetos "atravessassem" os limites e vendessem álbuns aos jovens, tanto negros como brancos.

Para este objetivo, todo artista tinha um acompanhamento rigoroso para garantir que ele levasse a mensagem de que os negros eram respeitáveis e, assim, conquistar a maior audiência possível.

Preconceito

Era comum que as capas de álbuns tivessem grupos masculinos com camisas da moda e ternos, enquanto as mulheres vestiam roupas elegantes e mudavam seu cabelo para um "estilo europeu".

Gordy até marcou aulas de dicção para seus principais artistas para garantir que qualquer traço de sotaque dos guetos fosse trocado por uma pronúncia mais aceitável às televisões controladas por brancos.

Em resumo, a Motown queria que seus artistas fossem negros, mas não de um jeito que pudesse "amedrontar" os brancos. Para Gordy, o racismo na indústria da música tornava isto uma necessidade: ao invés de desafiá-lo, antes de tudo você deveria evitá-lo.

Gordy sabia que havia achado ouro quando contratou os irmãos Jackson para a Motown e rapidamente começou a criar uma estratégia de marketing para eles.

A história começou quando Diana Ross, a artista mais bem aceita pelo público e mais bem-sucedida da gravadora, descobriu os garotos e estava determinada a vê-los prosperarem.

Com o crescimento do incipiente movimento de black power e oposição à Guerra do Vietnã, muitos na Motown não viam a hora de ir além e exigiam gravar músicas que refletiam os anseios populares. Alguns, como Marvin Gaye, puderam fazer isso.

Mas, através do Jackson Five, o sempre conservador Gordy via a chance de algo bem mais seguro. Os irmãos poderiam ser divulgados com fins lucrativos como extrovertidos, mas respeitáveis – eles poderiam tocar um bubble-gum soul (com letras românticas e mais pop, sem tratar de problemas sociais e políticos).

Acompanhando a época, eles eram autorizados a serem "negros", mas apenas dentro de certos limites. Uma das tragédias desta história é que depois que Michael saiu da Motown na metade dos anos 70, uma época em que ele tinha a maior parte do controle de sua carreira e sua imagem, o movimento que celebrava o orgulho negro estava em declínio terminal.

Portanto, o racismo e as respostas aparentemente contraditórias a ele acompanham Michael desde sua infância. É realmente tão surpreendente que isso viria a se refletir em sua vida e essência?

http://www.socialistworker.co.uk/art.php?id=18310

terça-feira, 30 de junho de 2009

O social-liberalismo do governo Lula e os dilemas para a esquerda brasileira e os movimentos sociais

Recentemente, participei de um tópico no Botequim Socialista (comunidade no Orkut) sobre uma recente entrevista do Chico de Oliveira para o jornal Valor Econômico em que colocava FHC à esquerda de Lula:

E fiz uma análise sobre o caráter social-liberal do governo Lula e suas implicações para a reorganização dos movimentos sociais e da esquerda brasileira.

Segue o texto com algumas alterações:

Em seis anos de governo, já ficou explícita a ausência de políticas públicas estruturantes no governo Lula, trocadas pelas tais políticas sociais compensatórias (Bolsa Família, ProUni etc.) - prefiro não chamá-las de "assistencialistas", pois possuem um caráter diferenciado em relação às clássicas políticas populistas de clientelismo que deve ser levado em conta.

Ainda assim, o Bolsa Família não é por si só o único fator do "amortecimento" das mobilizações populares. A cooptação dos principais movimentos sociais e entidades estudantis e sindicais (a "tríade" formada por CUT, UNE e MST e outros movimentos sociais do campo e da cidade e entidades sindicais) se dá também pela tese ilusória de "governo em disputa". O próprio MST aceitou receber cestas básicas do governo para distribuir entre os assentamentos como forma de manter a luta pela reforma agrária, mas nunca recebeu nenhum tipo de incentivo do Bolsa Família.

O fato é que poucos setores da militância da esquerda e dos movimentos sociais tinham expectativa de que o governo Lula poderia ter um caráter radical (isto é, antineoliberal e antiimperialista). Por outro lado, a grande maioria não pensava que o governo se renderia de forma tão breve e profunda às políticas neoliberais, foi uma surpresa mesmo aos setores de esquerda mais críticos ao governo Lula desde o seu início, como o PSTU (que defendia a absurda idéia de que a eleição de Lula poderia representar uma situação revolucionária e apresentou a tese de uma "frente popular preventiva").

Fora a permanência das políticas neoliberais na área econômica, há duas importantes diferenças do governo Lula para o governo FHC que implicam em uma releitura de como deve ser o combate à esquerda ao atual governo: o governo Lula possui uma maior base social, de caráter mais popular, para consolidar suas políticas e mescla as políticas neoliberais na economia com as políticas sociais compensatórias, o que não o coloca como um governo puramente neoliberal, mas sim "social-liberal".

O fenômeno do social-liberalismo tem fracassado na Europa (as experiências de Schröder na Alemanha e Blair na Inglaterra nos anos 90 e 2000 são emblemáticas) pelo seguinte: as políticas públicas no welfare state tinham um caráter estruturante e asseguravam uma melhora realmente significativa nas condições de vida da classe trabalhadora de seus países.

Em suas análises, Chico de Oliveira costuma dizer que enquanto no centro do capitalismo vigorava o bem-estar social, na periferia existia o "mal-estar social". E o Brasil estava incluído neste quadro de mal-estar social. Exceção feita aos governos Vargas – que, no contexto histórico da Grande Depressão, assegurou direitos sociais à classe trabalhadora conforme atrelava amplos setores do movimento operário brasileiro ao seu projeto de nacional-desenvolvimentismo conservador na época - e Jango, os setores explorados e oprimidos da população brasileira nunca experenciaram uma "época de ouro" em termos de políticas públicas em serviços públicos e redistribuição de renda, incluindo aí o período pós-ditadura a partir do governo Sarney até o governo FHC. O social-liberalismo do governo Lula chega neste contexto: uma desigualdade social abissal com um histórico bastante negativo de políticas públicas e programas sociais.

Ao mesmo tempo que redistribui a renda de forma superficial, isto é, sem mexer nas raízes da concentração de renda (como a questão agrária, por exemplo), ganhando base social entre trabalhadores da cidade e do campo e outros setores populares que há décadas não tinham algum benefício real, o governo Lula consegue a partir das políticas sociais compensatórias ampliar o mercado consumidor brasileiro, criando as condições para a dinamização e expansão do da economia brasileira, principalmente em setores da economia como a construção civil e o setor de serviços (que emprega centenas de milhares de jovens trabalhadores nas grandes cidades).

Ou seja, o social-liberalismo do governo Lula aparentemente se coloca como um oásis na ausência de um histórico de políticas públicas e de uma seguridade social digna à classe trabalhadora ao mesmo tempo que consegue agradar aos principais setores do empresariado nacional e internacional, ao capital financeiro e ao agronegócio por criar as condições de um mercado consumidor ampliado que assegura a dinamização da economia.

Por isso, questões e pautas como o combate à precarização do trabalho, a reforma agrária, a reforma urbana, a reestatização de empresas privatizadas no governo FHC, a questão ambiental (descartada pela construção de barragens e usinas hidrelétricas, transposição do Rio São Francisco etc.) estão longe de terem alguma relevância ao governo Lula, anulando qualquer expectativa que este "esteja em disputa", ou seja, não possui um caráter contraditório.

E como entram a esquerda e os movimentos sociais nisso tudo? Uma parte dos movimentos sociais ainda acredita na tese de que "o governo Lula está em disputa", de que há uma ala mais à esquerda capaz de influenciar os rumos do governo Lula, apesar de terem passado mais de 6 anos de governo e uma 'guinada à esquerda' hoje do governo Lula está fora de cogitação.

Outra parte, como o MST, fica em cima do muro e diz que não está na base do governo, mas também não é oposição. O MST aponta o grande capital como o principal inimigo a ser combatido (empresas ligadas ao agronegócio e às sementes transgênicas: Monsanto, Syngenta, Bayer, Bunge etc.). E a combatividade do MST no campo é, inegavelmente, algo impressionante. O problema da avaliação política do MST é que ela "esquece" que o grande capital tem o suporte do governo Lula e vice-versa. Portanto, o combate ao grande capital será coerente se for combinada com a crítica pela esquerda ao governo Lula. Importante ressaltar que há uma tensão interna no MST pouco conhecida.

Enquanto Stédile, principal dirigente do MST, mantém uma postura programática "nacional-desenvolvimentista", uma outra ala liderada por Gilmar Mauro (dirigente do MST paulista) e outros dirigentes defende que o MST tenha uma posição clara sobre o verdadeiro caráter do governo Lula e que rompa com as ilusões nacional-desenvolvimentistas ou de retomada do "projeto democrático-popular", pois a luta pela terra é algo que vai na contramão do capital (seja ele nacional ou internacional). Gilmar deu uma interessante entrevista para a revista Debate Socialista em 2008:

http://www.debatesocialista.com.br/entrevistagilmarmauro.html

Setores majoritários da oposição de esquerda ao governo Lula, que deveriam se aliar ao MST e a outros movimentos sociais no combate ao grande capital, priorizam a atuação institucional. Costumam apenas fazer a crítica ao governo Lula (o que não é taticamente equivocado, mas limitado se não envolve uma discussão sobre o caráter de classe do Estado capitalista e a inerência da corrupção ao capitalismo) pelas denúncias de corrupção, defendendo a bandeira da ética de forma moralista e correndo o sério risco de ter seu perfil confundido com setores da direita que exigem "ética" e "moralização da política", deixando de priorizar as lutas sociais e o combate ao grande capital.

Ou seja, a tarefa de apresentar uma alternativa de esquerda anticapitalista e radical aos movimentos sociais e à classe trabalhadora brasileira apenas terá coerência quando juntar a crítica (bem-feita, aprofundada, séria, que saiba lidar com o enraizamento social do PT e do governo Lula para poder combatê-lo) ao governo Lula com a crítica ao grande capital.
É bastante equivocado desprezar a atuação no campo institucional, que tem sua devida importância, mas, evidentemente, a luta institucional não substitui a luta social. E é este espaço que a esquerda brasileira deve priorizar, buscar e atuar em frentes de luta comuns com os movimentos sociais.

Apesar das diferenças políticas que existem, é necessário buscar pontos em comum e frentes de luta unitárias, ainda mais em um contexto de crise econômica do capitalismo global e refluxo do movimento de massas. Apenas dessa forma, podemos começar a sair da marginalidade social, ideológica e política e enxergar no horizonte a possibilidade de tensionar e influenciar setores da classe trabalhadora e dos movimentos sociais e estimular a auto-organização popular.

O ato unitário no dia 30 de março com a participação de MST, CUT, Intersindical e Conlutas e os avanços na discussão da fusão entre Intersindical e Conlutas são bons exemplos de que há possibilidade de reverter esta situação. No entanto, a esquerda socialista precisa estar à altura destas tarefas.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ao que virá

Há algum tempo vinha pensando em criar um blog para publicar textos e análises sobre política, economia, esporte, arte, cultura e outros elementos da vida social cotidiana. Já participei de blogs por outras vezes, mas minha preguiça permanente sempre impedia de retomar. Tomara que agora não impeça a continuidade de mais um recente espaço no mundo cibernético.

‘travessia insurgente’. A palavra ‘travessia’ nunca havia chamado minha atenção antes, apenas na infância quando a confundia com ‘travessura’. Comecei a encará-la de outra forma a partir de contatos esporádicos - mas, valiosos - com a literatura e a música, ao ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e ouvir Travessia, de Fernando Brant e Milton Nascimento. Decidi colocá-lo como título deste blog por dois motivos: um é que a travessia pode se relacionar com a trajetória individual de alguém, outro é a proximidade semântica com o método dialético, capaz de explicar as metamorfoses da história desde o seu início e fornecer perspectivas e alternativas ao seu futuro, baseando-se sinteticamente na indissociabilidade entre contradição, mediação, mudança e totalidade.

A travessia nada mais é que uma transposição, sempre a entendi neste sentido. E, de certo modo, podemos apropriá-la para a compreensão da sociedade em que vivemos. Para tal desafio, a travessia não pode ser estática ou indiferente. Há que tomar partido e, coerente com uma práxis revolucionária, evidenciar sua insurgência contra a dominação ideológica, econômica e política da sociedade capitalista em todos seus aspectos e pela urgência de um horizonte socialista e emancipatório capaz de superá-la, contribuindo para o que Walter Benjamin chama de “consciência de fazer explodir a rotina da história”.

Resumindo: ‘travessia insurgente’ nadará contra a corrente, tentando fortalecer de forma modesta - porém, sólida e crítica - a contra-hegemonia.