segunda-feira, 20 de julho de 2009

Fora Sarney: para além da transparência, a necessidade da crítica à democracia liberal

A trajetória reacionária e corrupta de José Sarney está de longe de ser uma novidade.

Após carreira como parlamentar e governador do Maranhão na ARENA (o partido do regime militar) e no PDS (sucessor da ARENA nos anos 80 que daria origem aos retrógrados PFL e PPB), Sarney filiou-se ao PMDB e foi indicado como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves na última eleição indireta do regime que marcaria o fim da ditadura militar depois de um amplo movimento das "Diretas Já!".

Com sérios problemas de saúde que o acompanhavam, Tancredo morreu na véspera da posse, e Sarney tornou-se o primeiro presidente pós-ditadura militar. No contexto do neoliberalismo preconizado por Thatcher e Reagan, o governo Sarney foi marcado pelos surtos de hiperinflação e por um forte arrocho salarial – no que ficou conhecido como "salário de fome".

Sarney deixou o governo em 1990 e passou a disputar as eleições ao Senado pelo Amapá, o Brasil seguia vivenciando (e, em menor escala, continua vivenciando) uma abissal concentração de renda e grandes problemas sociais e econômicos.

O Maranhão, que durante 40 anos consecutivos foi governada por Sarney e seus apadrinhados políticos, sempre situou-se entre os estados com mais mazelas sociais e econômicas: alta mortalidade infantil, enorme concentração fundiária e, por diversas vezes, o estado com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no Brasil. [1]

O PT entre a cruz e a espada

A eleição de Sarney à presidência do Senado foi uma sucessão da resposta dada pela base do governo Lula à crise instaurada após as denúncias de corrupção que envolveram Renan Calheiros e levaram à sua renúncia.

Desde o início do governo Lula, o Senado brasileiro teve quatro presidentes diferentes: José Sarney, do PMDB (janeiro de 2003 a fevereiro de 2005; desde fevereiro de 2009); Renan Calheiros, do PMDB (fevereiro de 2005 a outubro de 2007); Tião Viana, do PT (outubro de 2007 a dezembro de 2007); Garibaldi Alves, do PMDB (dezembro de 2007 a fevereiro de 2009).

Com exceção da breve passagem de Tião Viana, o PMDB sempre esteve na presidência do Senado desde o início do governo Lula exercendo o papel de principal partido da base do governo Lula no Congresso Nacional, apesar da ínfima convergência político-programática com o PT da fundação deste em 1980 até meados dos anos 2000.

Ou seja, o PMDB cumpre papel crucial para assegurar a tal "governabilidade" preconizada pelo PT, uma realpolitik à brasileira da pior espécie que alimenta o fisiologismo e dá vazão à controversa aliança do governo - apoiado por amplos setores da classe trabalhadora da cidade e do campo e pela maioria dos movimentos sociais - com o agronegócio e o grande capital.

À medida que o socialismo foi jogado para escanteio, o "pilar ético" e a "transparência" tornaram-se as principais características autoproclamadas pelo PT na gestão de administrações municipais e estaduais nos anos 90.

O governo Lula sempre buscou se distanciar das sucessivas crises que abatiam o Congresso Nacional, como se a sua consciente e retrocedente opção por uma composição de governo ideologicamente confusa (com partidos reconhecidamente direitosos, como o PP e o PTB, e legendas de aluguel, como o PR, o PRB etc.) não tivesse nenhum tipo de responsabilidade.

Porém, desde o surgimento da crise política em 2005, desencadeada pelos escândalos de corrupção que envolveram dirigentes e parlamentares da Articulação (tendência interna majoritária no PT) e grande parte da base aliada do governo Lula, não foi por acaso que expressões como "pilar ético" e "transparência" pouco foram utilizadas pelos dirigentes do PT.

Em 2001, José Genoíno já alertava uma preocupação sobre a relação entre o PT e as mazelas da ordem liberal-burguesa que, não ocasionalmente, veio a se tornar realidade em circunstâncias posteriores:

Na medida em que o Estado brasileiro está viciado por longa tradição patrimonialista e particularista, nem sempre a falta de moralidade e transparência reveste-se de caráter ilegal. A própria estrutura administrativa e legal do poder está impregnada de falta de transparência, de imoralidade e de privilégios. Quanto mais o PT vai ocupando essa estrutura inerentemente corruptora, mais será desafiado a reformá-la profundamente, recusando práticas sacramentadas na memória e na história política brasileiras. Caso contrário, sucumbirá a essa estrutura e será arrastado para a vala comum dessa tradição. [2]

A sinuca de bico da "moralização da política"

A cada eleição, vemos a idoneidade e a integridade serem propaladas como "virtudes" pelo eleitorado e pelos candidatos. A discussão e o combate (mesmo que apenas retórico, na maioria das vezes) à corrupção não é de hoje.

Puxando a sardinha para o seu lado, a direita também exige ética e transparência. Na disputa presidencial de 1960, Jânio Quadros utilizou a "vassourinha" como slogan de sua campanha – para, pretensamente (e, obviamente, ficaria apenas na pretensão), varrer a corrupção. A UDN de Carlos Lacerda bradava ininterruptamente contra a corrupção e "imoralidade", tentando associá-la ao getulismo (seu principal rival político).

Nos dias atuais, não é raro ver parlamentares e dirigentes do PSDB, DEM, PMDB, PP, PTB, PR, entre outros partidos de direita e legendas de aluguel, exigindo a moralização da política. A oposição de direita (PSDB, DEM e PPS) ao governo Lula insinua que a corrupção atingiu seu ápice no atual governo.

Mas não há como esquecer o obscuro processo de privatizações e outras denúncias de corrupção que marcaram o governo FHC e os governos estaduais e administrações municipais geridos por PSDB e DEM, como os governos Covas e Alckmin em São Paulo (este último com o recorde de 69 CPIs engavetadas) e os últimos anos da desastrosa e reacionária gestão de César Maia na prefeitura carioca.

De forma limitada e equivocada, a ética é identificada pelo senso comum como uma conduta moral pessoal: "tal político é ético", "esse partido tem ética".

No entanto, a ética – na acepção revolucionária – está intrinsecamente ligada à práxis, e, como tal, deve ser concebida de forma política, já que possui suas implicações político-práticas, em sua interação na luta de classes como totalidade das relações sociais. Um dos elementos-chave da "ética revolucionária" (não guiada por princípios morais, e sim políticos), por exemplo, é a solidariedade ativa (e não contemplativa) às lutas da classe trabalhadora.

Em sua contribuição ao I Seminário Internacional do PSOL, Pedro Fuentes, dirigente do Movimento Esquerda Socialista (MES, tendência interna do PSOL), diz:

Dentro do terreno democrático tem uma grande importância o problema da corrupção, que tem sido praticamente sistêmico nesta fase de decadência e lumpenização e que atinge a todos os países – salvando as diferenças, inclusive aqueles que são independentes como Venezuela. [3]

Em uma época de crise do capitalismo global (econômico-financeira, energética, ambiental e alimentar), o combate à corrupção não pode ser o principal eixo de luta dos socialistas. Não se trata desprezar a importância tática do combate à corrupção. Mas sim de questionar a maneira como se dá este combate. Temos que enxergá-la como mais uma questão política, ou seja, uma questão de classe.

Os socialistas e o combate à corrupção

Ao analisar criticamente o Partido Trabalhista britânico, o marxista revolucionário palestino Tony Cliff costumava dizer a seguinte frase sobre a questão da corrupção:

Não é o poder que corrompe, mas sim a ausência do poder. [4]

E realmente procede: não podemos pensar a corrupção de forma individualizada no sentido de uma "moral pessoal", mas como resultado direto das desigualdades – econômicas, sociais e políticas – no capitalismo e sua força ideológica baseada em valores permanentemente preenchidos por individualismo e competitivismo.

Evidentemente, a corrupção não pode ser combatida em um sentido abstrato. Os socialistas devem trazer à tona denúncias de corrupção que expõem a direita e o reformismo, não em um sentido moralista, mas interligá-las ao regime político que dá sustentação ao capitalismo: a democracia liberal.

Mesmo que a correlação de forças não seja favorável, os socialistas devem envolver-se na atual discussão sobre a necessidade de uma reforma política e levá-la bem além dos temas principais como o "financiamento público de campanha" e a "lista fechada".

A imunidade parlamentar, por exemplo, não é obra do acaso, é justamente uma expressão do caráter de classe do Estado capitalista, pois explicitamente serve aos interesses dos mais ricos (latifundiários, grandes empresários industriais, da mídia etc.), minoria da população, representados majoritariamente no parlamento. Ou seja, a correlação de forças pode mudar conforme o contexto histórico, mas o parlamento segue sendo um aparelho de Estado a serviço da classe dominante: a burguesia.

E, dificilmente, tais aberrações antipopulares mudarão por ação dos próprios parlamentares senão pressionados por mobilizações populares em defesa de uma autêntica democracia. As brechas e os mecanismos da democracia liberal permitem a ausência de uma ampla e massiva participação da maioria da população em decisões que realmente influenciem os rumos da sociedade.

Qual o controle social exercido pela maioria da sociedade sobre os mandatos parlamentares, por exemplo? Nenhum realmente decisivo, não existem mecanismos de controle social e os mandatos parlamentares não são revogáveis na democracia liberal. O eleitorado exerce um papel passivo, elegendo parlamentares e governantes de dois em dois anos que, por diversas vezes, repetem-se no poder.

A representação da democracia liberal é historicamente restrita e antidemocrática: por poucas vezes, em relação à majoritária burguesia, trabalhadores urbanos, camponeses, indígenas, negros, mulheres, jovens e o povo pobre tiveram representantes, de fato, comprometidos em defesa de seus interesses na história da democracia liberal brasileira.

Tal situação não diz respeito apenas ao Brasil e aos tempos atuais. Em diferentes países e circunstâncias históricas, a minoria economicamente poderosa detém o poder de decidir os rumos da vida social, econômica e política da sociedade em detrimento da maioria.

Entretanto, a história nem sempre foi assim e nada garante que o será. Houve lutas, revoluções, resistência e experiências radicalmente democráticas, mesmo que de vida curta: a Comuna de Paris em 1871, a Revolução Russa e a União Soviética (1917-1924), a Revolução Alemã (1918-1924), a Revolução Espanhola em 1936, a Revolução Húngara em 1956, a Primavera de Praga e o Maio Francês em 1968, o poder popular chileno no início dos anos 70, a Revolução dos Cravos em 1974, a Revolução Iraniana em 1979, entre outras experiências.

Os soviets (conselhos, em russo) na Rússia, os conselhos operários na Alemanha, na Hungria e na Espanha, os cordones no Chile e as shoras no Irã eram instrumentos de poder operário e popular que contavam com ampla e massiva participação da maioria da sociedade e decidiam os rumos e diferentes aspectos da vida social (a produção econômica, o poder político, os serviços públicos etc.) e avançariam na transição de uma sociedade profundamente desigual, injusta e com pretensa liberdade que era a sociedade capitalista para uma sociedade igualitária, justa e plural, sem Estado nem classes, em que a liberdade humana fosse algo concreto: uma sociedade comunista, bem diferente do que aconteceu nos regimes do "socialismo real" - uma expressão caricatural que nada a tinha a ver socialismo, em que os trabalhadores simplesmente não tinham nenhum poder de decisão.

Mais recentemente, levantes e rebeliões populares no México, na Bolívia e no Equador, em diferentes situações, também proporcionaram situações semelhantes com a conformação de conselhos e assembléias populares em nível local.

É claro que tal experiência, infelizmente, não está na esquina e não será imediamente transplantada à atual situação política brasileira, como pensam cegamente alguns setores da esquerda de forma sectária. Ainda é necessário superar o refluxo do movimento de massas e a fragmentação e o isolamento das lutas sociais para que a esquerda e os movimentos sociais saiam da condição defensiva, e isto não se dará de forma automática e mecânica.

Devemos defender a saída imediata de Sarney da presidência do Senado. Mas sua provável substituição por outro político conservador – assim como aconteceu na campanha "Fora Renan" que levou à renúncia de Renan e sua substituição interina por Tião Viana e, posteriormente, definitiva por Garibaldi Alves – de nada adiantaria.

A potencial força do movimento reside na crítica ao caráter de classe da democracia liberal e a proposição de uma alternativa concreta: a necessidade de superar a democracia liberal-burguesa que nada tem de democrática e forjar uma autêntica democracia de baixo para cima em que os trabalhadores da cidade e do campo exerçam o poder de fato, ou seja, uma democracia socialista.

Notas:

[1] Paralelo entre rankings dos estados brasileiros nos IDHs de 1991 e 2000 feito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento:
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH-M%2091%2000%20Ranking%20decrescente%20de%20Estados%20(pelos%20dados%20de%202000).htm

[2] Até onde vai a moralidade do PT?, artigo de José Genoíno no Correio Braziliense em janeiro de 2001:
http://gab.miltontemer.sites.uol.com.br/tribuna_debates/183.html

[3] Um novo período na situação mundial, contribuição de Pedro Fuentes ao Seminário Internacional do PSOL que será realizado em agosto de 2009:
http://seminariocrise.files.wordpress.com/2009/04/um_novo_periodo_pedro_fuentes.pdf

[4] Labour’s addiction to the rubber stamp, artigo de Tony Cliff em 1967 em que critica as ilusões trabalhistas na possibilidade de uma "via parlamentar" ao socialismo:

2 comentários:

  1. Nego preto. Excelente,mas tu tme dereformatar o blog porque os textosficam imensos espremidosdo jeto que estão e perdem legibilidade.Ficma cansativos.

    ResponderExcluir
  2. Não entendo patavinas de formatação de blog, cara.

    Tentarei escrever textos mais sintéticos, é culpa da empolgação no teclado, hehehe.

    ResponderExcluir